A
tribo de Danna aportou na Irlanda e ninguém os viu chegar. Vieram
encobertos por uma nuvem mágica densa. Nesse tempo os Firbolg habitavam a
ilha e viviam oprimidos pelos Fomore, o povo das trevas, que, travadas
diversas lutas, lhes exigiram por fim tributos extorsivos. Agora um
espesso nevoeiro cobria toda a Irlanda em uma única camada de nuvem. Os
Firbolg sentiram uma terrível ameaça. Era a terra que se dissolvia em
abismo a seus pés, foi o que pensaram. Diante de tão incompreensível
poder, buscaram refúgio e por três dias e três noites se recolheram
oprimidos pela grande nuvem que se abateu sobre o país.
Seus
magos por fim descobriram que o fenômeno era efeito de encantamento, e a
custo fizeram uma contra-magia dissolver o nevoeiro. Saíram de seus
abrigos e perceberam que um novo povo tinha aportado no país. Já tinham
construído uma fortificação em Moyrein. Era a tribo de Danna que chegava
trazendo poderosas forças e tesouros de magia desconhecidos. Tinha sido
Morrígu, auxiliada por Badb e Macha, deuses guerreiros dessa tribo, que
tinha evocado o nevoeiro usando formulas druídicas.
Os
Firbolg enviaram um de seus guerreiros, Sreng, para saber quem eram os
misteriosos invasores. O povo de Danna enviou, por seu turno, Brian para
os representar. Os dois embaixadores examinaram as armas de cada um com
grande interesse. As lanças dos Danna tinham pontas agudas e eram
leves. As dos Firbolg eram pesadas e rombudas. Brian propôs que os dois
povos dividissem a Irlanda pacificamente, juntos derrotassem os Fomore e
defendessem o país de futuros invasores. Os Firbolg não se
impressionaram com a superioridade dos Danna, eram para eles novos
intrusos que chegavam para também os oprimir. A irmandade que ofereciam
era dissimulação e astúcia para os dominar. Foi o que pensaram, e
decidiram recusar a proposta: Se concedemos parte do país, logo exigirão
o país todo, e nos exigirão tributos insuportáveis, disse Eochai, seu
rei. A batalha foi travada no Campo de Moytura, no sul de Mayo, perto do
lugar hoje chamado Cong. Liderava os Firbolg seu rei, Eochai Mac Erc; o
rei Nuada comandava os Danna.
O
povo de Danna ergueu-se no campo de batalha em fileiras flamejantes,
levando escudos sólidos, brilhantes e de bordas vermelhas. Nas fileiras
dos Firbolg faiscavam espadas, lanças e lançadores. A peleja começou.
Vinte e sete Danna enfrentaram e derrotaram o mesmo número de Firbolg.
Seguiu-se nova embaixada para deliberar sobre o modo de continuar a
batalha. Nuada obteve de Eochai a garantia de que os dois exércitos
lutariam com números iguais de combatentes. A luta recomeçou com uma
série seguida de combates singulares. No fim do dia retomavam cada um
para seu campo, ao descansavam e se curavam das feridas de guerra com
banhos de ervas medicinais. A luta durou quatro dias, com terríveis
baixas para ambos os lados.
Um
herói dos Firbolgs, Sreng, partiu em dois o escudo de Nuada, o rei dos
deuses, e com um terrível golpe decepou uma de suas mãos. Eochai, rei
dos Firbolg, menos afortunado, perdeu a vida. Os Danna obtiveram
vitória, protegidos por sua arte mágica de cura. Por fim, os Firbolg,
derrotados e morto seu rei, ficaram reduzidos a apenas trezentos homens.
Sabendo que para eles não havia salvação, pediram combate até a morte
de todos os combatentes de um dos lados. Mas, em vez de consentir, os
Danna ofereceram a eles a quinta parte da Irlanda: que tomassem para si
uma província de sua escolha. Concordaram e escolheram Connacht, que se
tomou seu território.
Como
resultado da perda de uma de suas mãos, Nuada ganhou o codinome de
Argetlam, o Mão-de-Prata. Diancecht, o medico da tribo Danna, fez para
ele uma mão artificial de prata, tão habilmente que se ligou em todas as
juntas, e tão forte quanto uma real. Contudo, por mais excelente que
fosse o trabalho de Diancecht, era uma mão artificial, e, de acordo com
os costumes celtas, nenhum homem mutilado podia ocupar o trono. Nuada
foi deposto, e a tribo de Danna reuniu-se em assembléia para escolher um
novo rei.
Escolheram
Bress, filho de En e Elathan, para reinar em seu lugar. Esse Bress,
agora rei, embora forte e belo, trazia a sua parcela de alma escura,
herança de sua raça, os Fomore. Não apenas permitiu que os inimigos de
Erin, os Fomore, oprimissem seu povo com tributos insuportáveis; ele
próprio tratou de taxar extorsivamente seus súditos. Era tão mesquinho,
que não dava hospitalidade nem a chefes nem a nobres nem a músicos nem a
poetas, tampouco tinha a alma generosa. Reunia em si os piores vícios
num príncipe, intoleráveis entre o povo da tribo Danna.
Não
bastassem as taxas extorsivas, obteve com um estratagema hábil todo o
leite produzido entre os Danna. Inicialmente, exigiu apenas a produção
de vacas castanhas e sem pêlo, e o povo de Danna consentiu de
boa—vontade. Mas Bress passou todo o gado de Erin entre duas piras de
fogo, de maneira que perderam o pêlo e ficaram queimadas. Foi desse modo
fraudulento que obteve todo o leite produzido e ficou com o monopólio
de toda a fonte de alimento da Irlanda. Para obter sobrevivência, todos
os deuses, mesmo os maiores, foram forçados a trabalhar para ele. Ogma, o
seu herói, tornou-se coletor de lenha para o fogo. Dagda, o construtor
de fortalezas e castelos.
Bress
provocou a ira dos deuses. Era inadmissível um rei que não fosse
liberal com seus súditos. Na corte de Bress ninguém jamais teve entre as
mãos uma faca untada de gordura, ou sentiu o aroma da cerveja. Os
poetas, músicos e ilusionistas já não davam divertimento ao povo, pois
Bress não compensava sua arte. Por último ele cortou toda a subsistência
dos deuses. Tão escassa era a comida, que começaram a ficar fracos de
fome. Ogma só tinha forças para apanhar um terço da lenha necessária ao
fogo, e passaram todos a sofrer tanto com o frio quanto com a fome.
A
crise se agravava. Foi então que dois médicos, Miach e Airmid, filho e
filha de Diancecht, o deus da medicina, vieram ao castelo onde Nuada, o
antigo rei, vivia. Examinaram seu pulso e viram que a juntura da mão de
prata tinha causado uma grave infecção. Miach quis saber onde estava a
mão mutilada. Tinha sido enterrada. Ele exumou a mão e a colocou no
coto, pronunciou fórmulas mágicas: tendão com tendão, nervo com nervo se
juntem! Em três dias a mão tinha se recomposto e se fixado no braço, e
desse modo Nuada estava novamente perfeito.
Diancecht,
pai de Miach, ficou furioso quando soube do feito do filho: Então, será
possível que ele exceda a mim em talentos medicinais? Não, e preciso
extirpar isso. Ninguém além de mim tem maior ciência em medicina e arte
mágica de curar. Foi ao encalço do filho e abriu-lhe a cabeça com a
espada. Miach facilmente se curou. Diancecht o feriu novamente.
Novamente Miach se curou. Pela terceira vez Diancecht o feriu. Dessa vez
o golpe tinha rompido a membrana que envolve o cérebro. Novamente Miach
foi capaz de curar-se. E pela quarta vez, Diancecht veio ate ele e,
cego de ciúmes e despeito, cortou-lhe a cabeça, partindo seu cérebro em
dois. Miach não pôde fazer nada, era impossível a cura. Satisfeito,
Diancecht tratou de sepultá—lo. Sobre seu túmulo nasceram 365 ervas,
cada uma com propriedades curativas para as doenças de cada um dos 365
nervos que formam o corpo. Airmid, a irmã de Miach, colheu todas
cuidadosamente e as ordenou segundo a propriedade de cada uma. Mas o
ciúme e o despeito do pai novamente impediram que esse bem prosperasse.
Embaralhou e confundiu todas entre si. A jovem irmã não pôde mais
separá-las. Não fosse esse ato promovido por um instinto sombrio, dizem
os poetas da Irlanda, os homens teriam o remédio para todas as doenças e
seriam imortais. Diancecht é o pai da discórdia e o destruidor das
esperanças do homem. Nunca mais houve outra oportunidade como essa.
Miach foi o único ser dotado de tão excelente conhecimento e magia.
Ninguém mais houve que excedesse seus divinos dons.
Lamentável
o fim a que seu dom o levou. Embora morto, os efeitos benéficos de sua
arte continuaram a exercer domínio entre os deuses. Os poetas da Irlanda
— e ouçamos os poetas, entes que sensivelmente captam os mistérios do
mundo — disseram a respeito da morte de Miach: Esse deus luminoso que
morre, ainda que a sorte o tenha apartado dos seus, permanece atuando
entre aqueles a quem amou. Assim acontece aos luminosos: parecem
destinados a trazer toda ventura a seus pares e nenhuma para si mesmo.
Tem
razão os poetas. O luminoso Miach tinha curado a mutilação de Nuada, e o
fizera novamente homem sem defeito. Esse acontecimento oportuno foi uma
bênção para os deuses, filhos de Danna, que nessa ocasião deliberavam
sobre a necessidade imediata de depor Bress e acabar com sua tirania. Um
evento recente tinha aviltado a todos. A tribo de Danna amava seus
poetas e lhes dedicava grande honra. Toda consideração lhes era
concedida e eles partilhavam da mesa dos reis. Aconteceu que o injusto e
indelicado Bress tinha feito um agravo ao poeta Cairpré, filho de Ogma,
deus da literatura, que insuflou na mente do filho o divino dom da
poesia.
O
sagrado poeta tinha ido visitar Bress. Em vez de ser tratado com as
honras que lhe cabiam, o indelicado rei o instalou em um aposento escuro
e pequeno, um cubículo, desprovido de toda benevolência e amizade. Fogo
não havia, cama não havia, mobiliário não havia. Um cubículo nu,
desconfortável, com uma miserável mesa sobre a qual havia pedaços de
bolo velho, pão seco, nenhuma água. Cairpré passou frio, fome e sede a
noite toda. Na manha seguinte levantou cedo e, sem dizer uma palavra ao
rei, deixou em silêncio o palácio. Era costume entre os poetas criar um
panegírico em honra do rei por sua hospitalidade. Cairpré, porém compôs
uns versos satíricos mágicos. A primeira sátira composta na Irlanda, que
dizia:
Nenhuma carne nos pratos, nenhum leite nas taças;
nenhum abraço aos visitantes;
nenhum prêmio aos menestréis:
Eis o louvor que Bress oferece!
E
foi esse poeta mágico que completou a tarefa de Miach. A sátira de
Cairpré foi tão virulenta, que o rosto de Bress arrebentou todo em
pústulas vermelhas. Era isso também uma mutilação que impedia um rei de
continuar reinando. Os Danna exigiram que ele renunciasse, e Nuada,
novamente perfeito pelas mãos de Miach, reassumiu o reino.
Obrigado
a deixar o trono, Bress procurou sua mãe Eri e lhe pediu que lhe
declarasse quem era seu pai: Seu pai, ela disse, é Elathan, que me
seqüestrou secretamente em uma noite e, depois de me copular, deixou
comigo esse anel para dar àquele em cujo dedo ele se ajustasse e,
dizendo isso, colocou o anel no dedo de Bress. De posse do anel e do
segredo de seu nascimento, ele retornou ao país dos Fomore, sob o mar.
Queixou-se ao seu pai, Elathan, pedindo a ele que reunisse um exército
para reconquistar o trono. Reuniram-se os maiorais em conselho: Elathan,
Tethra, Balor-do-Olho-Maligno, Indech, todos os guerreiros e chefes.
Decidiram organizar uma grande hoste, e levar a Irlanda para o fim do
mar onde o povo de Danna nunca mais a encontrasse
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