Lugh
esperava o retomo de seu pai. Como não voltasse, decidiu ir ao seu
encalço. Ele passava pela Campina de Muirthemne. A terra, indignada,
testemunha da morte de Kian, falou a Lugh e contou-lhe tudo. Ele exumou o
pai, e confirmou a verdade. Constatou a violência praticada e chorou
sobre seu corpo ultrajado e penalizado pela terrível morte. Imprecou
contra os autores da morte de seu pai, assassinos impiedosos, sem
lealdade nem honra, que de modo perverso e vil mataram quem estava só e
indefeso. Chorou, lamentou e, nada mais a fazer, devolveu o corpo ao
túmulo, levantou um pilar com seu nome escrito em ogam, e voltou para Tara.
Todo o
povo de Danna estava reunido no palácio quando Lugh ali entrou. Os três
filhos de Turenn também estavam presentes. Ele então tocou o sino dos
chefes, com o qual os gaélicos pediam silêncio na assembléia, e então
disse: Povo da tribo da deusa Danna, pergunto-lhes: que vingança
mereceria quem tivesse matado vosso pai de forma vil e desonrosa,
aviltando seu corpo e ultrajando seu valor de guerreiro?
Um
grande aturdimento tomou conta da assembléia, e Nuada, o rei, disse:
Certamente, não está nos dizendo que é seu pai que foi morto assim?
Foi. A
terra onde ele foi sepultado revelou-me. Mataram Kian, meu pai, com
pedras e paus. Seu corpo traz marcas de morte impiedosa. A pele ruiu, os
músculos foram espedaçados e sua mortalha é uma massa de sangue
coagulado. Vejo aqui nesta assembléia os autores de sua morte, e eles
sabem melhor do que eu a maneira como o mataram.
Se
alguém matasse meu pai desse modo, eu não me contentaria em tirar a vida
do assassino de uma vez. Arrancaria todos os dias um membro de seu
corpo para que ele sofresse uma morte lenta e agoniante, disse Nuada, e
todos os demais concordaram, entre eles os filhos de Turenn.
Aqueles
que mataram meu pai concordaram com essa sentença de morte! gritou Lugh.
Tenho todos como testemunha. Eu, porém, declaro que meu desejo de
vingança se arrefece mediante a punição que desejo lhes impor. Exijo, em
vez de lhes dar morte igualmente vil, um pagamento de resgate aos três
que cometeram esse ato indigno contra meu pai. Juro, não agirei contra o
rei violando as leis nem a proteção real concedida a todos que estão em
seu palácio, mas, se recusarem a minha proposta de resgate, não sairão
daqui até que uma solução seja encontrada para esse caso.
Se fosse
eu o assassino de seu pai, disse Nuada, eu me consideraria afortunado
de me ver poupado de uma vingança terrível em troca do pagamento de um
resgate.
Os
filhos de Turenn se consultaram entre si: Lugh sabe que fomos nós que
matamos seu pai. Muito mais conveniente será admitir nossa culpa, pois
sua vingança será terrível se nos esquivarmos, concordaram entre si
Iuchar e lucharba. Brian, porém, não queria confessar, temendo que Lugh
retirasse o oferecimento de um resgate e pedisse sua morte. Mas seus
irmãos o forçaram a confessar, e ele acabou dizendo: Ninguém ignora, é
Lugh, o desafeto que se interpunha entre Kian, seus dois irmãos e nós.
De nada adianta negar que o matamos, pois vejo que você está muito bem
informado de tudo. Estamos prontos a pagar o resgate pedido.
Muito
bem, disse Lugh, declaro perante esta assembléia o vosso resgate. Eis o
pagamento que exijo: três maçãs, uma pele de porco, uma lança, dois
cavalos e um carro, sete porcos, um cão caçador, um espeto de assar e
três gritos numa colina. Se acharem muito, declarem sua objeção. Eu
examinarei quais entre essas exigências posso retirar. Se estão de
acordo, digam e jurem compromisso de cumprimento imparcial do resgate
nesta mesma hora e partam em demanda dos objetos que pedi.
Parece insignificante, disse Brian, mas temo que sob exigência tão mínima se oculte uma vingança maior.
Não
penso que seja pouco o que exijo, disse Lugh, e declaro perante esta
assembléia que não procurarei outra vingança. Se lhes dei minha
garantia, agora peço que façam o mesmo.
Não pode duvidar de nós. Não somos porventura a garantia de um resgate maior do que esse que exige? disseram os irmãos.
Guerreiros
tão destemidos deviam conciliar atos de semelhante valia, disse Lugh.
Não é o que tem demonstrado vossos atos. Não merece confiança quem agiu
de modo tão desonroso. Ademais, conheço vossa fama. Tenho noticias de
que, embora temíveis e corajosos guerreiros, já falharam muitas vezes em
cumprir promessas feitas. Saibam que coragem e valentia não bastam para
fazer o valor de um guerreiro. É preciso mais, juntar atos e
pensamentos ajustados.
A
declaração de Lugh perante a assembléia era constrangedora para os
filhos de Turenn. Esforçaram-se para manter a cabeça erguida e aceitaram
a exigência jurando, diante de Nuada, rei de Erin; Bove Derg, filho de
Dagda, e de todos os nobres da tribo de Danna, que cumpririam o acordo.
Lugh
levantou e disse: E então hora de declarar os pormenores do resgate que
lhes exigi e que deverão ser rigorosamente cumpridos conforme as minhas
determinações. As três maçãs são aquelas que frutificam no Jardim das
Hespérides, situado no Leste. Não há outras que se comparem. São únicas
em beleza e magia. Além da cor de ouro e sabor de mel, possuem a
propriedade da cura imediata de todo tipo de mal que aflige o homem. Uma
só mordida basta para fazer retroceder o mal. O guerreiro ferido em
batalha ou o homem afligido por doenças fatais veem sua saúde e vigor
voltarem instantaneamente. Uma vez mordida, recompõe-se e ressurge
inteira, renovada em todo o seu esplendor. O guerreiro que a possuir
poderá levar avante qualquer façanha. Embora destemidos guerreiros,
vocês terão grandes dificuldades nessa empesa. Uma profecia amplamente
conhecida revelou que três guerreiros do Oeste entrariam no Jardim das
Hespérides para conquistar as maçãs à força. O rei preveniu-se e
escolheu guardas temíveis para vigia-las noite e dia, e há muito estão
preparados para recebê-los.
A pele
de porco é outra peça mágica de grande valor. Está na posse do rei Tuis
da Grécia. Esse porco, ainda vivo, tinha a propriedade de transformar em
vinho a água do rio ou fonte onde passasse. Durante nove dias durava
essa magia, e o ferido ou doente que bebesse desse vinho, mesmo às
portas da morte, ficava inteiramente curado. As propriedades mágicas do
porco estavam em sua pele, foi o que faiaram os magos. O rei mandou
matá-lo e guardar a pele encantada. Previnam-se. Terão muita dificuldade
para consegui-la.
Outro
objeto mágico que não será fácil obter é a famosa lança envenenada de
Pezar, rei da Pérsia. Tem o nome de Furiosa. O guerreiro que a possuir,
pode executar façanhas impensáveis no campo de batalha. Em tempos de
paz, é preciso deixar sua ponta mergulhada em água para que sossegue sua
fúria matadora.
Os dois
cavalos e o carro estão em Sigar, na Sicília. Pertencem ao rei Dobar.
Também serão imensas as dificuldades para obtê-los. Não há carro mais
belo; os dois cavalos trotam tanto em terra como no mar. São
incomparáveis em leveza, velocidade e força.
Os sete
porcos pertencem a Asal, rei dos Pilares Dourados. Possuem a propriedade
de manter a saúde. Quem deles se alimenta jamais fica doente. Mortos
num dia, ressurgem no outro inteiros e completos.
O cão
caçador está em Iroda. Seu nome é Fetinis. Brilha como o sol. Todos os
animais caem instantaneamente em sua presença desfeitos de qualquer
poder sobre ele.
O espeto
de assar esta na ilha de Fincara. Pertence às mulheres guerreiras que
ali habitam. São em número de 150 e o guerreiro que se aproximar não tem
salvação. Uma só deias enfrenta três de uma vez em combate
corpo-a-corpo e são imbatíveis.
O último
ato do seu resgate será dar três gritos na colina de Midkena, ao norte
de Lochiann. Midkena e seus filhos iniciaram meu pai na arte das armas e
o amam ardorosamente. Mesmo que esse resgate a mim devido os livre de
minha vingança, vocês não escaparão da sua. Além do mais, sua geasa não os permite deixar que alguém grite no topo de sua colina.
Eis tudo que deverão cumprir para resgate da morte que deram a Kian, meu pai, concluiu Lugh.
Brian,
Iuchar e lucharba, flihos de Turenn, escutaram em silêncio. Sua
perturbação aumentava à medida que Lugh ia relatando os pormenores da
demanda que teriam de empreender. Agora, terminada a longa lista de
Lugh, não opuseram palavra alguma, abandonaram em silêncio o salão e
rumaram para a casa de seu pai.
O pai
escutou-os contar sobre a dura demanda que tinham de cumprir e quedou-se
em prolongado silêncio. Seu rosto cobriu-se de sombras, todo ele
mergulhado em profundos pensamentos, e quando saiu de sua introspecção
veio dizendo: Meus filhos, terríveis noticias são essas que me trazem.
Temo e choro o seu destino. Penso que encontrarão a morte nessa demanda.
Entretanto, foi um ato vil matar Kian do modo como fizeram, e a pena
que lhes foi imposta é justa. Acontece que o Ildana exige de vocês uma
façanha de proporções extraordinárias. O que ele lhes impôs só pode ser
obtido pelo próprio Lugh ou por Manannan Mac Lir. Voltem à Lugh e
peçam-lhe para ceder o cavalo de Manannan que está em sua posse, o das
Crinas Brilhantes. Ele não recusará se, como penso, deseja que sejam
bem-sucedidos. Caso recuse, peçam o barco de Manannan, o Varredor de
Ondas, mais útil do que o cavalo. Como sabem, não pode recusar um
segundo pedido.
Fizeram
como o pai aconselhou. Foram a Lugh e disseram: A demanda que nos exigiu
é tarefa que somente com a ajuda do cavalo de Manannan será possível
ser cumprida. Viemos lhe pedir que nos ceda o cavalo mágico.
Esse cavalo não é meu e não posso emprestar o que não me pertence, disse Lugh.
Então nos ceda o barco de Manannan, o Varredor de Ondas.
Não
posso negar esse segundo pedido. Está em Brug-na-Boyne. Deverão
buscá-lo. Mas devem saber que ele lhes parecerá muito pequeno para dois
homens. Não se perturbem nem façam comentários a respeito de sua
pequenez. Entrem em silêncio e pronunciem apenas: O tu, barco precioso
de Manannan, Varredor das Ondas do mar, Lugh ordena-te que navegue e nos
leve para... E digam o nome do lugar aonde querem ir, mais nada.
Acautelem a língua e não digam palavras vãs.
De volta
para casa, contaram ao pai que tinham obtido o Varredor de Ondas: Ah,
meus filhos, apesar desse valioso barco, essa demanda é penosa e
difícil. Lugh ambiciona esses objetos mágicos para enfrentar a batalha
de Moytura, e por isso cedeu o barco. Mas essa ajuda de nada valerá na
busca do espeto de assar ou para os três gritos na colina de Midkena.
Ah, meus filhos, são esses dois feitos que mais temo. Sinto que perderão
a vida nesses dois últimos.
Os três
irmãos partiram com sua irmã Ethnea para Brug-na-Boyne. Turenn ficou só,
lamentando a sorte de seus filhos, pressentindo que não retomariam
vivos da demanda.
Encontraram
o barco na margem do rio. Seguiram as instruções de Lugh e pronunciaram
brevemente: ó tu, barco precioso de Manannan, Varredor das Ondas do
mar, Lugh ordena que navegue e nos leve para o Jardim das Hespérides!
O barco
moveu-se tomando rumo e disparou mar afora, por caminho breve,
deslizando com ritmo e harmonia sobre as ondas. Ia macio, nenhum
balanço, nenhum abalo, senhor das águas, imperador dos mares, corria
veloz sobre o imenso dorso do oceano acalmando águas turbulentas. Não
demorou quase nada, o barco os entregou ao seu destino. Desembarcaram, e
ali ficou o Varredor das Ondas quieto, esperando para os levar de
volta.
Temos
uma jornada muito perigosa pela frente, disse Brian. Temos de estudar
entre nós o melhor modo de obter o que viemos buscar.
Temos de
enfrentar os perigos lutando, disseram seus irmãos. Estamos condenados a
esse embate, que a essa aventura fomos compelidos pelo ato que
praticamos. Para que deter nossos passos? Ou trazemos essas maçãs ou
morremos. Não há mais que essas duas consequências nessa aventura.
Não,
não, disse Brian. Não é assim. Devemos usar a prudência. A valentia não é
inimiga da cautela. Estamos diante de uma aventura extraordinária que
deve ser conduzida de maneira que nosso valor atravesse os tempos e
nossa fama fique inscrita na memoria das gerações que se sucedem. Se
temos de morrer, que seja de forma honrosa, e que nosso nome fique
gravado com letras de valor e proclamado por toda gente, entre nosso
povo e além. De outro modo, daremos oportunidade para que reprochem
nosso caráter e conduta com a pecha de insensatos e tolos. Seremos
bem-sucedidos se utilizarmos nossos dons mágicos em nosso favor. Vamos
transmutar nossa forma humana em falcões. Com a destreza de nosso vôo e
garras poderosas, poderemos escapar das flechas e lanças dos guardas e
trazer as maçãs.
De fato,
era um pensamento correto, concordaram todos. Brian brandiu então sua
vara mágica e transformou a si e seus irmãos em belos e imbatíveis
falcões. Rumaram para o jardim e sobrevoaram numa altura compatível para
a investida. Mergulharam em parafuso com a velocidade vertiginosa dos
falcões, desviando habilmente da profusão de flechas lançadas pelos
guardas. Alcançaram as árvores com tal precisão e velocidade, que o
intervalo de tempo entre a colheita das maçãs e o vôo de fuga foi tão
imperceptível!, que uma ação e outra pareceram simultâneas. Em poucos
minutos iam alto no céu e já nenhum perigo podia ameaçá-los.
Mas
ainda não estava encerrada a aventura dos irmãos. Chegou aos ouvidos do
rei a noticia de que três falcões tinham roubado as maçãs mágicas. Era
preciso remediar a situação. Suas três filhas, poderosas magas, tomaram a
forma de três grifos e foram no encalço dos falcões. A perseguição foi
feroz, mas os falcões, usando a habilidade de seu vôo, avançaram
mantendo cada vez maior distância. Os grifos, vendo que perdiam a
perseguição, usaram de um último recurso: lançaram espessas rajadas de
fogo sobre as aves. Foram atingidas gravemente, provocando queimaduras e
cegueira.
Ah,
morreremos! - disseram Iuchar e Iucharba. Ficaram em estado lastimável.
Estavam certos de que não sobreviveriam. Brian tomou sua vara mágica e
transformou a si e aos irmãos em cisnes e desceram no mar, desaparecendo
da vista dos grifos. E assim puderam rumar seguros para o barco,
Varredor das Ondas, com a primeira demanda cumprida.
Ó tu,
barco precioso de Manannan, Varredor das Ondas do mar, Lugh ordena que
navegue e nos leve a Tuis, rei da Grécia, disse Brian, e o barco partiu
cortando ondas, veloz como o vento, sutil como a pluma, leve como um
pássaro planando no ar. E em breve alcançou o destino.
Não
seria como bravos e temíveis guerreiros que se apresentariam ao rei. Os
poetas na Grécia usufruíam de grande reputação e eram cultuados como
deuses. Entenderam-se mutuamente que se anunciariam como poetas de Erin.
Assim resolvidos, seguiram para o palácio e pediram uma entrevista com o
rei: Somos poetas de Erin e desejamos oferecer ao rei os versos que
compomos para ele, disseram. A guarda os foi anunciar. O rei estava no
salão onde, reunido com seus nobres, regia um grande banquete. O
momento, todo de Ócio e diversão, não poderia ser mais propício para a
apresentação de bardas. O rei, envaidecido com a honra, disse: Que
poetas são esses, que só de ouvirem falar de meu nome percorrem longas
distâncias para cantarem em meu louvor? Traga-os, quero ouvi-los e fruir
seus versos.
Os três
irmãos foram conduzidos ao salão. Curvaram-se ate o chão em homenagem ao
rei. Regozijas e grandes louvores e mais delicadezas para os bardos que
chegavam: Juntem-se ao nosso banquete, bem-vindos, bem-vindos sejam,
poetas de Erin! Dizei-nos vossos nomes. Brian, fazendo reverências,
falou: Aqui viemos, grande rei, cantar a vossa gloria. Sou Brian, filho
de Turenn, e esse é Iuchar; esse, Incharba, meus irmãos.
A
presença de poetas vindos de terras tão distantes é uma felicidade para
nós. Sentem-se à mesa e bebam as nossas felicitações e a nossa alegria!
O
banquete era suntuoso, a mesa rica e próspera, as bebidas finas e
aromáticas. Beberam, comeram e se divertiram partilhando do vinho da
amizade entre os convivas e o rei. Depois de saciados, o ambiente
impregnado de aromas alcoólicos, a alegria era geral, a satisfação e o
prazer dominavam. Os poetas do rei, como era habitual, cantaram seus
poemas aos presentes. O silêncio caiu sobre todos, que de olhos
iluminados e embevecidos, fruíram os versos encantadores dos poetas da
Grécia, sem igual no mundo.
Era
preciso então que os poetas de Erin cantassem o poema que vieram trazer
ao rei: Viemos aqui como poetas, é essa arte que agora devemos praticar,
irmãos, disse Brian, e começou a cantar:
Cantamos tua fama, Ó Tuis.
Entre os reis, és o carvalho majestoso.
A pele de um porco como prêmio
de vossa generosidade a recompensa pretendemos.
Uma hoste tremenda e o mar bravio
E um poder perigoso a que não se pode opor:
A pele de um porco como prêmio
de vossa generosidade a recompensa
pretendemos.
É um bom poema, disse o rei; não fosse a dificuldade de entender seu sentido, maior prazer me daria.
Eu
explico, disse Brian. Nós o louvamos como um carvalho acima dos reis. O
carvalho excede em excelência todas as demais árvores. Assim vossa
majestade excede todos os demais reis em generosidade e nobreza. "A pele
de um porco como prémio" alude àquela que vossa majestade tem em seu
poder, ó Tuis, e eu quero obtê-la como prémio por minha poesia. "Uma
hoste tremenda, o mar bravio, a que não se pode opor", ó rei, significa
que não costumamos partir sem o objeto que nosso coração deseja.
Apreciaria
mais seu poema se ele não mencionasse a minha pele de porco. Não foi um
verso sábio este, ó poeta de Erin! Entretanto, não me furtarei a
dar-lhe a recompensa como prêmio que lhe é devido. Em lugar da pele, que
de modo algum darei, farei medir três quantidades de ouro na pele que
os senhores ambicionam, uma para cada um.
Que
sobre vossa majestade se derramem todos os bens, ó rei! É uma nobre
recompensa, disse Brian. Mas sou amante da precisão, tenho uma natureza
apreciadora da medida justa, e lhe peço que me deixe assistir à medição.
Nada
oponho ao teu desejo, concordou o rei, e os filhos de Turenn
acompanharam os servidores ao salão do tesouro. Veio a pele para as mãos
do tesoureiro, e antes que pudesse preparar-se para a medição, Brian o
assaltou, derrubou-o ao chão e apossou-se da pele. Os três irmãos
correram dali para a sala do banquete com a espada em punho. Os nobres
ergueram-se de um salto, tomaram suas armas e a luta começou. Foi uma
sangria. Os filhos de Turenn abateram a uns; outros abalaram em fuga.
Afinal, o rei e Brian se enfrentaram em combate singular. Lutaram ambos
com grande bravura e feroz empenho. Quem sairia vencedor, é o que no
calor da refrega não se podia prever. Brian desviava-se dos golpes do
rei com incrível destreza; assim como o rei, e a batalha fervia entre
dois adversários iguais em valor e pericia nas armas. No meio do
redemoinho de saltos e golpes, Brian desabou ao chão pesadamente. Já o
rei vinha dar o golpe fatal avançando com fúria, ele rolou sobre a
próprio corpo, ergueu-se e se desviou com uma rapidez calculada. O rei,
surpreendido, não teve tempo de deter seu avanço e foi chocar-se
violentamente contra outro alvo, a coluna logo atrás. Brian, girando os
calcanhares, avançou contra o rei e enterrou a espada em seu peito.
Terminada a refrega, correu com os irmãos para a orla onde o barco
mágico os esperava. Pronunciou incompletamente a formula: ó tu, barco
precioso de Manannan, Lugh ordena que navegue e nos leve...
O barco não se moveu. luchar gritou: Brian, para onde temos de ir agora? O barco precisa saber.
Na
confusão da fuga, Brian tinha esquecido o próximo destino. Naquele
momento, era-lhe difícil reunir as idéias. Tinha de tomar uma decisão
rápida, e a que melhor pôde conceber é partir para uma ilha próxima,
porto provisório, onde primeiro pudesse se restabelecer das feridas na
luta com o rei: ó tu, barco precioso de Manannan, Varredor das Ondas do
mar, Lugh ordena que navegue e nos leve para a ilha de Samos. O barco
deu partida, conduzindo-os suavemente pelo mar. Aportaram na ilha e
Brian fez uso da pele mágica para restabelecer-se. Tomou o vinho obtico
com a pele e imediatamente estava cheio de vigor, nem cicatrizes
restaram, de novo pronto para a próxima demanda.
Refeito,
deliberaram sobre o próximo destino. A posse daqueles dois tesouros
mágicos lhes favoreciam vencer as tarefas que lhes restavam. Definiram o
rumo seguinte. Agora era a lança de Pezar, rei da Pérsia, que tinham de
demandar. Convinha-lhes dissimular novamente a esse rei persa a
condição de poetas. Aos reis os poetas são sempre bem-vindos e por eles
são amados. Não há rei que não queira um poeta ao pé de si. A capacidade
de tornar as palavras belas atrai os reis e principalmente os cantos
pródigos de louvores inesquecíveis que lhes são dedicados. Um rei se faz
imortal na pena de um poeta, e o valor que lhe é atribuído percorre o
tempo, e assim se faz eterno, imortal. Com efeito, a poesia era o que
tornava os reis amados do povo. Os reis amigos não viviam sem poetas.
Ó tu,
barco precioso de Manannan, Varredor das Ondas do mar, Lugh ordena que
navegue e nos leve a Pezar, rei da Pérsia! O barco se arrumou para tomar
o rumo indicado e voou sobre as águas, seu caminho liquido, via mutante
e instável. Domou as ondas, domou perigos, domou redemoinhos, e lá
apartou suave e brando levando os filhos de Turenn à sua nova aventura
épica. Prenderam o cabelo com fita, marca dos poetas, e desembarcaram na
aria. Atravessaram as muralhas e foram à parto do palácio pedir
audiência com a rei: Trazemos nossos cantares poéticos ao rei, soberano
da Pérsia!
Foram
recebidos. Chegaram em momento oportuno, no fim do dia, quando os reis
sentam-se à mesa com seus nobres para festejar, comer, beber e
alegrar-se; quando em ambientes suntuosos e fartos eles se divertem com
cantores e bailarinas. Embriagantes cantos, danças eróticas e sensuais
arrebatam corações, corpos e mentes, e os homens sentem-se no paraíso.
Chegaram ali no calor da festa, e entraram cantando versos para maior impressão causar nos convivas.
Não haja pesares ao nosso rei Pezar
nunca as aflições lhe definham o ato
As horas lhe guardem o melhor azar
Viva sempre amado e cultuado!
Sejam
bem-vindos, poetas de Erin, possa esta noite ser de encanto e que nossa
hospitalidade lhes traga alegria e prazer. Juntem-se a nós e partilhem
de nossa alegria.
Comeram,
beberam e se alegraram. Saciados, chegou a hora da dança, poesia e
música. Um grupo de bailarinas dançou, e sua dança arrebatou todos os
corações e incendiou seus corpos no fogo do entusiasmo e dos encantas
mágicos da arte. Os poetas da corte cantaram seus versos, e comoveram a
audiência, queda em silêncio e possuídas da alma sagrada da poesia.
Foi nesse momento que Brian levantou-se, poeta visitante vindo de longes terras para louvar o rei Pezar, e ele cantou:
Lança não há mais valorosa que a de Pezar
A batalha dos inimigos frustra letal
Nenhuma derrota pode lezar
Esse rei que vence todo o mal.
De teixo feita, nobre madeira, nunca ociosa
Sua esplêndida seta avança fatal
aclamada unânime a Furiosa
A morte certa vem afinal
Seu poema é eloquente, ó poeta, mas o senhor louva minha lança, e me escapa a compreensão desse louvor, disse o rei.
Meu senhor, soberano da Pérsia, grande rei, pretendo como prêmio por meu poema conhecer essa lança tão fabulosa, disse Brian.
É uma
arma que está guardada cuidadosamente. Devem saber que sua fúria é
mortal e para apaziguá-la é necessária mergulhar sua seta em água. Eu o
acompanharei à sala das armas, mas saiba que é a sua condição sagrada de
poeta que o faz merecer de mim tamanha concessão.
Ó grande
rei, levarei comigo a imagem de sua generosidade e cantarei em toda
Erin sua nobreza e valor, disse Brian. Essas palavras encantaram o rei.
Sua fama correria o mundo nos versos do poeta. A imagem de sua glória
atravessaria o mar e perduraria no tempo, conhecido e louvado além da
Pérsia.
Contente,
o rei acompanhou os irmãos para a sala de armas. Ali, Brian contou
novos louvores ao monarca pela beleza e brilho de seu incrível poderia
bélico: Não é nada isso tudo diante do que verá, a lança mortífera, mais
poderosa que milhares de armas juntas, replicou o rei. E, cada vez mais
entusiasmado, conduziu Brian para conhecer a poderosa lança. Ela estava
num tanque especialmente preparado para guardá-la. A água corria
constante, entrando por uma abertura e saindo por outra, renovando-se
continuamente. Era espantosa, a água ao redor da lança fervia, efeito de
sua fúria e ânsia de atuar em batalha.
Brian,
como um felino que sorrateiramente espreita sua presa, mediu o momento
oportuno para assaltar de surpresa o rei e furtar-lhe a lança. Era
preciso muita destreza. Uma vez erguida da água, a sua fúria devastaria
tudo ao redor: Espantoso! - exclamou Brian, o poder dessa lança é
extraordinário. Gastaria de vê-la atuar...
O rei
não teve tempo para replica. Brian com um movimento rápido apoderou-se
da lança, e partiu em disparada. Os irmãos a seguiram logo atrás. O rei
acorreu convocando guardas para a defesa. A lança nessa altura, furiosa,
retorcia-se incontrolável. Um grupa de dez guardas vinha em socorro do
rei. Brian, com um domínio espetacular da lança, matou todos de uma só
vez; outro grupo caiu na sequencia, e depois mais outro. O rei,
desesperado, quedou-se inerte. Não havia o que fazer. A lança obedecia a
quem a tivesse nas mãos. Ele chorou imprecando contra si mesmo: ó,
infeliz! Por que foi acreditar nesse embusteiro e grande dissimulador?
Infeliz, infeliz, infeliz, repetia inconsolável, e dava tapas no próprio
rosto: Perdi minha maior preciosidade! Jamais sofri derrota tão
arrasadora! - queixou-se e, fraquejado de forças, deixou-se ficar
esparramada pelo chão, e fazia uma figura miserável ali em posição tão
desleixada para um rei.
Brian e
seus irmãos atravessaram a porta do palácio matando todos que
encontravam, alcançaram as muralhas e rumaram para a orla. A lança dava
rabanadas investindo contra pedras, árvores e tudo que ladeasse o
caminho: Calma, acalme-se, Furiosa, acalme-se, dizia Brian tentando
controlar a sanha mortífera da terrível arma. Os irmãos vinham atrás à
uma distância segura: o seu nome é "Furiosa", diziam, e davam pinotes. Calem-se! - pediu Brian; ela pode voar de minhas mãos e matá-los!
Chegaram
enfim ao Varredor das Ondas. O barco, ao ver a arma assassina
retorcendo-se em torno do próprio eixo, remexeu-se todo em aflição.
Brian antes de entrar na embarcação, mergulhou a lança na água e esfriou
sua fúria. Manteve-a sempre sob a água. O barco aquietou-se. Embarcaram
e Brian, o guia de todos, pronunciou: Ó tu, barco precioso de Manannan,
Varredor das Ondas do mar, Lugh ordena que navegue e nos leve ao reino
de Sigar e ao rei Dobar. O barco fez seu rumo e disparou suave pelo mar
de azul cobalto.
Iam
agora em demanda do precioso carro e cavalos do rei de Sigar. Seguiram
firmes e orgulhosos de sua inteligência e façanha, mas guardando sua
língua de pronunciar palavras vãs. A um sinal de palavras insensatas dos
irmãos, Brian dizia: Calem-se! E para Brian era doloroso vigiar e ser o
condutor de tudo na demanda. Mas ele sabia que seus irmãos eram só
grandes guerreiros, não tinham a arte do pensamento correto. E esse é o
traço mais perigoso e devastador nos deuses e nos homens, aprendeu Brian
desde que matara Kian com injusto e traiçoeiro ato, tanto quanto
insensato, e agora carregava o fardo das consequências e pagava suas
penas.
Ainda
sim, conquistaria para si o resgate de sua pessoa, é o que doravante
almejava nessa demanda, e nada mais desejava, já que a morte que dera a
Kian regia agora a sua vida, e toda ela transformara-se num circulo que
orbitava unicamente em torno desse ato, acabado e finalizado, impossível
de remediar.
Brian
agora ocupava seus pensamentos em achar a forma adequada para se
apresentar na corte de Sigar: Creio, irmãos, que é mais conveniente nos
apresentar ao rei como soldados de Erin, disse.
Preferia
que dessa vez chegássemos em nossa forma de guerreiros terríveis,
hostis e valentes, que vieram buscar os cavalos e o carro de Sigar e que
o levarão ou pela amizade ou pela força.
Não
faremos isso absolutamente! - reprovou Brian. Ouçam minha proposta. Nos
apresentaremos como cavaleiros de Erin que ali vieram dispostos a
proteger e guardar quem melhor nos recompense. Penso que ganharemos a
preferência do rei. Conquistaremos a sua confiança e isso nos facilitará
o acesso aos bens que viemos buscar. Nosso sucesso nessa demanda será
uma consequência natural.
Iucharba
e Iuchar concordaram. Afinal, o irmão já tinha provado três vezes que
seus planos eram bem-sucedidos, e muito melhor era seguir-lhe o parecer
do que arriscar a morte numa aventura perigosa.
Chegaram
à orla e desembarcaram, agora portadores dos bens mágicos que já tinham
conquistado. Brian, com toda cautela, antes de rumar para o palácio,
deixou os irmãos no barco e seguiu para a cidade a fim de encontrar um
saco de couro bem vedado. Era sua intenção guardar a lança Furiosa num
saco cheio de água, tanto tempo quando fosse possível, até que se
instalassem.
Ia pelo
caminho perquirindo sobre o objeto que procurava aos raros passantes com
quem cruzava: Nesta terra não existe o objeto que procura, diziam. Viu
que era inútil prosseguir a busca e não havia o que fazer senão
aquietar-se e pensar em soluções. Sentou-se no caminho para pensar num
modo de apaziguar a Furiosa: É uma situação difícil, dizia em seus
pensamentos. De que meio posso me servir para levar comigo a Furiosa?
Segundo pensa Pezar, somente a água pode apaziguar a sua fúria. Mas será
somente isso? Estou certo de que há outro meio. De que modo descobrir
senão testando? Trago comigo objetos mágicos que podem apaziguá-la: ou o
vinho obtido com a pele do porco ou as maçãs poderão curar-lhe a fúria.
Não sei que efeito fará a maçã. É muito arriscado usa-la. Conforme
conclusão natural do poder de suas virtudes, a cura que as maçãs
propiciam é permanente, e não me convém esse efeito para uma lança como
Furiosa. Já o vinho deixa de ser vinho em nove dias. Isso me faz pensar
que, se tem a virtude de uma cura permanente em seres vivos, um objeto
de metal pode reagir de outro modo. Seja como for, é um risco que tenho
de enfrentar. Ou devo entrar no palácio com ela em punho exigindo a
entrega dos cavalos e do carro? Não, o rei preferirá a morte a me
entregar esse bem precioso. Melhor é seguir o primeiro plano.
Com
essas conclusões em mente, voltou para o barco decidido a fazer uso da
pele. Tomou o objeto mágico, colheu água de um regato que corria nas
proximidades e a transformou em vinho com os poderes mágicos da pele.
Tirou Furiosa da água. A arma retorceu-se golpeando à direita e à
esquerda: Calma, calma, Furiosa, não é hora de matar! - disse, e banhava
a ponta da lança no vinho enquanto, a modo de conselho, recitava essa
prédica. De fato, a arma foi arrefecendo, arrefecendo, até que se quedou
adormecido o seu metal feroz.
Contente
e audaz, sentindo todas as suas forças trabalhando em seu favor,
convocou os irmãos para iniciarem sua jornada rumo à quarta aventura da
demanda. Em breve alcançaram as portas do palácio e pediram que fossem
anunciados ao rei Dobar como soldados de Erin que vinham oferecer sua
valentia e bravura ao seu reino.
O rei
estava ausente do palácio. Era seu costume presidir, em dias favoráveis,
a sua assembléia de cortesãos em uma extensa clareira perto de seu
palácio. Para lá seguiram os irmãos. Os três surgiram na orla da
clareira e produziram impressão. Notados de imediato, abriram caminho
para oferecer-lhes passagem e os nobres da corte de Dobar admiraram seu
porte de guerreiros potentes, de andar firme, corajoso e valente.
Diante
do rei, curvaram-se em reverência: Senhor, somos cavaleiros de Erin e
viemos a esta corte oferecer nossa coragem e valentia ao vosso reino.
O rei admirou o oferecimento: Senhores, desejam fazer parte de minha corte como guardas defensores de meu reino?
Sim,
desejavam. Tinham ouvido falar do rei Dobar e admiravam sua fama e seus
tesouros preciosos. Serviriam com lealdade o rei em tudo, e para isso
dariam a vida. O rei lhes ofereceu lugar de honra e confiança,
fazendo-os seus guardas pessoais. A recompensa de seus préstimos poderia
ser pedida na ocasião que lhes aprouvesse e seria equivalente à
magnitude dos serviços prestados. E assim concordes, selaram
compromisso.
Ficaram
no palácio, com aposento reservado à guarda pessoal do rei. Pelo
anoitecer, recolheram-se ao seu ambiente privado. Brian manteve Furiosa
consigo e dela não se separou: Segundo suponho, a lança acordara daqui
há nove dias, mas não tenho certeza de que será exatamente assim.
Preciso vigiar. A arma mais potente e a coragem mais audaciosa não valem
nada diante da imprudência, disse consigo.
E foi
auspiciosa sua conduta. A lança removeu-se na alta noite, retorceu-se, e
num salto desvencilhou-se de sua mão indo golpear a parede em frente.
Brian apressou-se em agarra-la e dominá-la. Tomou a pele de porco,
despejou do vaso a água deixada para a noite e a manhã, e passou a pele
de carneiro por ela. Banhou a ponta da Furiosa no vinho. Ela se aquietou
novamente adormecida: Esse acontecimento é extraordinário, disse
consigo. Segundo penso, o seu ferro reage ao vinho mágico por nove
horas. Amanha bem cedo preciso banhá-la novamente. E foi o que fez logo
que saiu da cama.
O dia
começava, era preciso investigar onde estavam o carro e os cavalos,
agarra-los e sair dali quanto antes. Como guarda pessoal do rei, os três
tinham de acompanhá-lo aonde fosse, e Brian previu que essa condição
logo lhes propiciaria estar de frente com seu destino. Mas isso não
sucedeu, e, passado um mês, Brian foi à presença do rei a fim de cobrar a
recompensa dos serviços prestados:
Senhor,
há já um mês estamos aqui, e venho pedir-lhe a recompensa de nossos
serviços, disse Brian. O rei perguntou-lhe que recompensa desejava
pedir, dissesse e ele julgaria a justiça do prêmio.
Senhor,
começou Brian, ouvimos dizer que vossa majestade possui um tesouro de
valor inestimável. Refiro-me ao carro e cavalos, que, segundo dizem,
andam tanto na terra como no mar. Como recompensa deste mês de serviços,
desejo que me mostre esse tesouro atuando em sua maravilhosa corrida
por mar e terra. O rei replicou dizendo: Julgo insignificante a
recompensa que me pede. Meus cavalos não saem do estábulo sem que haja
razão para isso. Mas, pela estima e valor que seus serviços merecem,
mandarei trazê-los amanhã cedo e percorrerei com eles uma porção em
terra e no mar, conforme seu desejo.
Foi oportuna a disposição do rei. Furiosa não veria banho de vinho na manha seguinte.
E tudo
sucedeu conforme as expectativas. Logo cedo, os cava-los vieram
atrelados ao carro. O rei, que não permitia a ninguém subir no carro e
guiar a marcha, e que os conduziu. Voaram como o vento pelo mar e pela
terra, feito pássaros que voam soltos no vazio do céu, desvencilhados de
todo obstáculo e força material. Era uma maravilha!
De volta
ao palácio, o rei entregou ao palafreneiro o seu tesouro para o
conduzir de volta aos estábulos. Brian, preparado para o momento,
assaltou o palafreneiro e tomou dele o carro e os cavalos, os irmãos o
seguiram e os três subiram para o carro. Os guardas empunharam as
espadas para lutar. O primeiro grupo que tentou se aproximar caiu por
terra, todos mortos pela lança Furiosa, e menos de minuto depois já os
três irmãos voavam rumo à orla.
O rei
viu que não adiantava persegui-los. A velocidade em que iam não era
páreo para cavalos comuns. Terrivelmente arrasado com a perda de um bem
tão precioso, rumou para o seu palácio. Os irmãos a essa altura, já
estavam na orla e decidiram quem ia conduzir o carro e os cavalos
conquistados: Não convém que nos apartemos. Levaremos os cavalos e o
carro no barco conosco, disse. Não vê que não cabe? - interpôs Iucharba.
Irmão, esqueceu que o barco pode levar quantos nele entrar? - voltou
Brian. Vamos, disse, e embarcou os novos passageiros. E, à medida que
iam um a um entrando, o barco se alargava para os receber: ó tu, barco
precioso de Manannan, Varredor das Ondas do mar, Lugh ordena que navegue
e nos leve para o reino de Asal, rei dos Pilares Dourados.
Partiram
no barco maravilhoso pelo vasto mar, rumo ao reino de Asal. Levavam
consigo as maçãs douradas, que curam os homens de todo mal e doença; a
pele de porco, que transforma a água em vinho terapêutico; a lança
Furiosa, que mata infalivelmente; os dois cavalos e o carro, que andam
tanto em terra como no mar. E agora navegavam rumo à quinta demanda, iam
conquistar os sete porcos mágicos, preciosidades que dão saúde eterna e
imortalidade a quem deles se alimenta, eles próprios animais imortais,
que, mortos num dia, no outro revivem.
Em pouco
tempo se aproximaram da costa e viram que estava guardada por soldados
armados. O rei Asal teve noticias dos três irmãos e de sua façanha
conquistadora de tesouros preciosos; soube que corriam os mares e tinham
grande destreza, eram hábeis, infalíveis, astutos e corajosos; não
havia força capaz de se opor a eles e conquistavam com facilidade o que
iam buscar. Possuidor de um tesouro que de modo algum queria perder,
preveniu-se armando a orla toda. Ele próprio comandava seus cavaleiros, e
mal viu os mágicos navegantes se aproximar, gritou: Detenham-se! Não
ousem avançar mais! Sei quem são, e conheço a vossa sanha de derrotar
reis para apossar-se de seus tesouros!
Brian
respondeu: O rei Asal, não nos censure! Não é por nossa própria vontade
que assaltamos reinos. Saiba que foi Ildana é quem determinou essa
demanda como resgate pela morte de seu pai. Devemos entregar a ele os
tesouros que exigiu de nós. Empenhamos nossa palavra. Como sabe, os reis
não entregam seus tesouros de boa vontade. Tivemos de conquistá-Ios
pela força e pela morte, e até hoje ninguém foi capaz de nos derrotar.
Não ha possibilidade de acordo amigável nesse caso. Se pudéssemos obter
esses bens pela paz, esteja certo de que o faríamos.
Se estão aqui é porque vieram em demanda de algum tesouro. Digam-me que tesouro pretendem obter no meu reino? - perguntou o rei.
Os sete porcos mágicos que lhe pertencem é parte de nossa demanda e viemos busca-los.
E pensam conquistá-los de que modo?
Morreremos
pelas mãos de nossa tribo se não cumprirmos o que Ildana determinou.
É-nos forçoso conquistar o que nos impõe essa demanda. Temos passado
dificuldades tremendas e tudo temos sofrido nesses caminhos hostis que o
destino nos impôs. As nossas penas não despertam sua compaixão, ó rei?
Entregue-nos os sete porcos como prova de seu desprendimento, amizade e
bondade, e para sempre terá nosso reconhecimento. De outro modo,
lutaremos e tomaremos pela força, matando ou morrendo, que para nós não
ha outra saída.
O rei
considerou por instantes o assunto, e depois falou: Entrarei em conselho
com meus pares para deliberar sobre a questão. Tao logo uma solução
seja encontrada, voltarei para lhes dar a minha resposta, disse o rei, e
reuniu-se com seus pares. Confabularam, debateram, propuseram soluções,
consideraram a sangria que resultaria entrar em luta com esses
conquistadores invencíveis, e decidiram, por amor da paz e da concórdia,
entregar-lhes com livres mãos e desprendimento de alma o tesouro
mágico.
O rei
voltou à orla e disse-lhes que concedia o tesouro pacificamente. Podiam
pois levá-lo, ele e ninguém do seu reino os impediria, a menos que
tentassem, contra a palavra empenhada, agredi-los. Os três quedaram-se
em silêncio e pensativos: nunca julgaram experimentar nessa demanda
tamanho êxito e tamanha paz. Sempre tiveram de lutar fervorosamente, ou
pela força, ou pela astúcia, sempre deixando rastros do sangue alheio e
do próprio pelos caminhos onde passavam. A decisão do rei os livrava de
uma penosa luta, e esse momento foi de grande felicidade e triunfo para
eles. Agradeceram ao rei e ao seu povo com o coração saltando dentro do
peito. Iuchar e Iucharba tinham o semblante comovido por essa
demonstração de pacifismo.
O rei
levou-os ao palácio e recebeu-os com afeto e amizade. Concedeu-lhes
repouso, uma mesa com boa comida e bebida para os apaziguar e confortar.
Ali puderam ter um momento de descanso em sua jornada sofrida.
No dia
seguinte receberam os sete porcos e se fizeram as despedidas, e Brian,
para premiar a generosidade e afeto do rei, cantou-lhe estes versos:
Os tesouros que trazemos são nossa dor;
Mas foi de vossa mão que o maior tesouro
ganhamos: o do coração livre e da amizade
que a aflição de nossa tempestade aliviou.
Nobre Asal! Os dias lhe sejam de paz,
a sua casa prospere em tão maior valor
quanto maior a alegria que nos deu.
A verdejante Erin para sempre há de honrá-lo
nos versos do poeta que em tua memória cantará!
Ó filhos
de Turenn, para onde seu destino os leva agora? - perguntou o rei.
Vamos para Iroda em demanda de Felinis, o cão caçador, disse Brian.
Então, retornou o rei, concedam-me ir com os senhores. Minha filha é
esposa do rei de Iroda, e tudo farei para evitar luta e sangue nessa
conquista. Lá também já chegou a noticia dos seus feitos e toda a costa
está protegida por cavaleiros armados.
Os
irmãos não viram razão para recusar a benevolência do rei e até se
alegraram com o oferecimento. Esse rei pacifista vinha mais uma vez
aliviá-los em sua fatigante demanda. Propôs o rei que fossem todos em
seu próprio navio. Assim fizeram, os três irmãos embarcaram todos os
tesouros conquistados, o barco de Manannan, Varredor de Ondas, todos
subiram no navio e partiram para Iroda. Chegaram felizmente e, com
efeito, toda a costa estava guardada por cavaleiros armados. Asal
desembarcou e rumou para o palácio em missão de paz. Apresentou ao rei,
seu genro, a questão dizendo: Vêm comigo os três filhos de Turenn,
guerreiros da tribo de Danna, e em seguida contou-lhe a historia dos
irmãos, mencionando que entregara pacificamente o tesouro de seu reino,
os sete porcos imortais, não só para evitar uma guerra desastrosa, mas
por opção pacifista, de que nada nos adiantam bens, por mais valiosos
que sejam, se temos de sacrificar nossos irmãos para mantê-los. O grande
embaixador, por fim, revelou: E estão aqui para conquistar seu cão
caçador. Aconselho entregá-lo pacificamente. São guerreiros poderosos e
não há nada que possa impedi-los.
O rei de Iroda não se interessou pelo conselho de Asal, e disse:
Fez um
infeliz papel quando decidiu fazer-se embaixador desses impostores. Não
existem guerreiros cuja potência e proteção dos deuses seja bastante
para dominar o meu cão e levá-lo, seja pela força, seja pela minha
vontade.
Vejo que
minhas palavras foram inúteis, disse o rei Asal. Reconsidere sua
decisão. Reafirmo que é inútil recusar-lhes o cão. Como é um resgate de
morte, estão empenhados, e não deixarão de levar o que vieram buscar.
Saiba que esses três guerreiros trazem consigo objetos mágicos
poderosos, e não há quem possa vencê-los. Derrotaram todos os reis que
tentaram se opor a eles. Haverá uma sangria se não consentir que levem
seu cão em paz.
O rei de
Iroda persistiu em sua recusa: Mostra-se fraco e desonrado rei
prestando-se a servir três guerreiros como esses, que vivem de saquear
reinos, disse.
Asal não
teve mais que dizer. Perturbado e derrotado, voltou aos filhos de
Turenn e relatou-lhes a intolerância do rei e o fracasso da embaixada.
Os irmãos empunharam as armas e avançaram para dar batalha ao rei de
Iroda e aos seus guerreiros. O rugir da espadas começou a executar sua
faina de violência e morte. Grandes guerreiros, a vida toda educados na
arte das armas, os irmãos venciam a refrega com facilidade. Mas ali
havia outros guerreiros hábeis como eles e com esses tiveram de lutar
ardorosamente. No embate acirrado que se seguiu, corpos saltavam,
giravam, moviam em vôo as armas de ambos os lados, barulho infernal do
ferro afrontando o ferro, repipocando faíscas entre os metais e
tilintando embates de morte. A luta corria igual entre os adversários.
Brian, a essa altura, cercado pelos mais valentes guerreiros de Iroda,
viu que ia sucumbir. A Furiosa estava em suas mãos, mas, adormecida,
executava seu embate como uma lança comum. Ela estava sob efeito do
vinho magico, nada havia que fazer. Brian, atingido mortalmente, caiu
moribundo, as forças derrotadas. Porém, quem tem a posse de objetos
mágicos não sai derrotado de nenhuma luta. Iucharba veio correndo
socorrê-lo, trazia-lhe sua maçã dourada para dar cura ao irmão. Os
adversários saltaram sobre ele. Grande guerreiro, ele brandiu sua
espada, varreu todos a direita, a esquerda e, mantendo os adversários
afastados por um momento, fez o irmão morder a maçã. Brian ergueu-se num
salto e saiu rodopiando como um ente sobrenatural, são e fortificado
como nunca. Pulava e saltava entre os adversários protegendo os irmãos e
dançando ferozmente como quem estivesse possuído de um poder
inatingível. Não bastasse isso, Furiosa começou a remexer-se acordando
do sono, e passou a dar golpes pela direita e pela esquerda, fazendo
tombar indefesos todos que estivessem no caminho. Os guerreiros de
Iroda, ao deparar aquela arma extraordinária: uma lança, que se mexia
por si mesma como coisa viva, quedaram-se aparvalhados. O rei ordenou
que todos recuassem, ele e Brian iam entrar em combate singular, os dois
valorosos guerreiros, eles só, corpo-a-corpo em uma luta final,
decidiriam quem será o vencedor, quem será o derrotado.
Os dois
guerreiros se enfrentaram. Brian não queria matar o rei. Sua intenção
era conduzir a Furiosa de modo que, rechaçando o adversário e seus
golpes, derrotasse-lhe todas as forças, arrancasse-lhe todo grão de
energia e o fizesse fraquejar pela fadiga completa.
A luta
foi demorada. O rei, hábil guerreiro, não se arrefecia. Era pesado o
combate para ambos. Brian só se defendia rebatendo apenas os golpes do
adversário e teve de travar um doloroso embate com a própria arma. A
terrível lança, em sua sanha de matar de vez o rei, se retorcia e se
esticava para atingi-lo. O rei não mostrou nenhuma surpresa diante de
arma tão singular. Lutava fervorosamente, a peleja parecia não ter fim, e
pela assistência toda corria um pesado véu de silêncio, imóveis todos
os olhos, suspensos todos os rostos, a respiração trémula, ao mesmo
tempo admirados de um combate tão espetacular, como esse nunca ninguém
tinha presenciado. A força e vigor de ambos os guerreiros parecia
imbatível. Não haveria vencedor, pensaram. luchar e lucharba não viam
outra saída para Brian que não matar o rei. De modo algum ele o ia
matar. O venceria pela fadiga. Tinha como trunfo a maçã mágica, e no
momento que se sentiu fraquejar, serviu-se dela para se revigorar.
Mordeu a fruta e ressurgiu possante, guerreiro sobrenatural, envolvido
de uma força indestrutível. Avançou com mais vigor, e fez a espada do
adversária voar. Desarmado, a rei quedou-se derrotado esperando o golpe
fatal da morte. Brian, em vez disso, resgatou a arma e a devolveu a seu
dono, convocando-o a retornar à luta. A essa altura porém o rei estava
quase desfalecido de fadiga. Arriou os braças, mal sustendo a espada nas
mãos. Brian levantou-o do chão, levou-o nos braços para Asal e disse:
Veja,
Asal, em sua honra entrego esse valente rei em suas mãos. Poderia ter
abreviado essa luta e tê-lo matado há muito com minha poderosa arma, mas
o poupei, e ele o mereceu. É um bravo valoroso, embora lhe falte o
sentimento da tolerância e da concórdia. Mas também já fui assim, e hoje
já não sou. O que nisso importa é que o venci. Ganhei seu cão nessa
luta. Agora temos negócio de justiça a tratar: desista ele de sua
intransigência e me entregue liberalmente o seu cão caçador. Sua
negativa vai decretar sua morte. Declare ele sua decisão.
Não
havia o que discutir. O rei, reconhecendo que era justa a proposição de
Brian, estabeleceu com ele a paz e entregou-lhe o cão. Ganharam a
admiração de ambos os reis e de todo o povo. Sua fama ali ficou, para
sempre conhecidos como justos e perfeitos guerreiros. Todos que iam em
Iroda visitar o rei ouviam falar do espetacular acontecimento que ali se
deu com a vinda de três cavaleiros, deuses portadores de forças
imbatíveis. Tinham barcos, armas, cavalos e carros mágicas. Reuniam
bravura e conduta honrosa no trato de suas conquistas. E foi assim que
sua fama se espalhou pelo mundo, chegou ate nós, e esta é a sua
história, que ainda não acabou e vai andar por algumas linhas a mais até
encontrar seu fim.
E já os
vemos adiante no barco mágico de novo navegando suavemente nas águas
inquietas do mar. Dormem como crianças indefesas, vão em descanso de
cura da luta cruel os filhos de Turenn, esse, que triste e afundado na
dor espera em Erin o retorno das suas criaturas e o fim da demanda,
feliz ou infeliz, qual seja ele bem sabe no seu coração, e mais o que
espera é que seu saber não seja saber mas ilusão de sua inquietude, que
também os deuses se iludem.
Nessa
altura, em seu solo, aconteceu aos três irmãos esquecer as duas jornadas
que ainda lhes competiam na demanda: o espeto de assar e os três gritos
na Colina de Midkena. Lugh, por artifícios de magia, soube que os
filhos de Turenn já estavam na posse dos objetos mágicos que lhe
importavam. Era quanto lhe bastava para ir em batalha contra os Fomore,
em Moytura. Tinha pressa em ter em seu poder esses objetos valiosos, e
ele próprio, com sua ciência e conhecimento, lançou um encantamento que
riscou da memória dos três irmãos as duas últimas partes da tarefa. E
sucedeu que, acordando de seu sono de alivio e cura, surpreenderam-se
com a constatação de que a demanda estava cumprida, e Brian falou
entusiasmado: Irmãos, estamos livres! Cumprimos felizmente a demanda e
fomos vitoriosos. Resgatamos nosso erro e já nos redimimos perante Lugh e
nosso povo. E hora de voltar e entregar os objetos mágicos que
conquistamos para ele: ó tu, barco precioso de Manannan, Varredor das
Ondas do mar, Lugh ordena que navegue e nos leve de volta a
Brug-na-Boyne.
O barco
mudou seu curso e tomou o caminho para Brug-na-Boyne, onde chegaram os
dois irmãos. Lugh estava em uma assembléia com o rei, reunida na
planície de Tara. Já os filhos de Turenn desembarcavam, ele já sabia que
eles Iá estavam com os objetos mágicos de sua estimação. Sussurrou ao
ouvido do rei: Os filhos de Turenn estão chegando a Erin. Receba os
objetos exigidos, que não me convém por ora encontrar-me com eles, e
deixou a Assembléia furtivamente, rumou para Caher-Crofim, a grande
Fortaleza de Tara, e ali, depois de entrar, fechou os portões, envergou a
armadura de Manannan Mac Lir e a capa encantada da filha de Flidas.
Entrementes,
os três irmãos se aproximavam do palácio do rei Nuada. A notícia de seu
retorno se espalhou e uma grande multidão veio recebe-los. Vinham no
carro conduzido pelos dois cavalos, carro e cavalos de uma beleza
esplêndida, tesouros que andam tanto em terra quanto no mar. Traziam
consigo as demais conquistas da demanda: as maçãs douradas, que curam os
homens de todo mal e doença; a pele de porco, que transforma a água em
vinho terapêutico; a lança Furiosa, que mata infalivelmente; os sete
porcos imortais, preciosidades que dão saúde eterna e imortalidade a
quem deles se alimenta; o cão caçador, brilhante como sol, que paralisa
só com a vista toda fera ou animal selvagem. E todos puderam admirar
essas grandes maravilhas.
O
entusiasmo arrebatou o povo: os heróis foram aclamados com todas as
honras e felicitações. Era grande a admiração diante dos tesouros que
foram capazes de conquistar.
O rei os
recebeu com cortesia, apreciou aquelas maravilhas e perguntou se tinham
conquistado todos os tesouros pedidos por Lugh. Brian respondeu:
Conquistamos todos os objetos valiosos exigidos. Grandes sacrifícios,
sofrimentos, perigos e dificuldades sem conta sofremos nesses caminhos.
Queremos a presença de Lugh para entregar-lhe o resgate que nos pediu.
Nuada, o
rei, disse: Lugh me encarregou de recebê-los em seu nome. Entreguem os
tesouros, mandarei mensageiros em seu encalço e em breve ele virá ter
com os senhores.
Foram os
mensageiros dar a Lugh a noticia de que os filhos de Turenn estavam de
regresso. O rei estava na posse dos objetos da demanda e pedia seu
comparecimento na assembléia real para dar por cumprido o resgate e
libertar Brian, luchar e Iucharba.
Lugh
escutou a mensagem, e partiu. Ali chegando, recebeu das mãos do rei os
objetos conquistados pelos filhos de Turenn, examinou tudo e disse: Com
efeito, os filhos de Turenn conquistaram tesouros, os mais apreciáveis,
que lhes competia nesse agravo. Porem, faltam aqui a duas últimas
partes, e como sabem, O rei e nobres aqui presentes, um resgate deve ser
cumprido em todas as suas partes, ainda mínimas que sejam. Os senhores,
povo da tribo de Danna, testemunharam o compromisso do cumprimento
integral do resgate. Vejo aqui as três maçãs, a pele de porco, a lança
Furiosa, o carro e os cavalos, os sete porcos e o cão caçador. Mas onde
estão o espeto de assar? Também não ouvi os três gritos na Colina de
Midkena!
Era
grande o atordoamento dos três irmãos. Nesse instante caiu-lhes de volta
na memoria a parte da demanda que faltava conquistar: Ah, que infelizes
eram! Julgaram-se livres, e a grande fortuna que pensaram ter
conquistado para si mesmos não passava de um erro de julgamento causado
pela traição de sua memória. Era-lhes incompreensível o seu
esquecimento. Sem ter o que dizer, saíram em silêncio da assembléia e
foram para a casa do pai. Contaram a Turenn e a sua irmã, Ethnea, a sua
infelicidade. Teriam de partir novamente em demanda do que ainda faltava
para conquistar sua liberdade.
Turenn,
os olhos envoltos em sombras e tristeza, disse: Ah, meus filhos, esse
esquecimento foi efeito de magia do poderoso Ildana. Confirma-se o que
eu previa, e não mencionou o seu triste pressentimento, que também os
três irmãos já o tinham na pesada atmosfera de desalento e dor que não
os deixava desde a entrevista com Lugh. Tudo encontrará seu fim,
continuou Turenn, conforme o fio que esses eventos tecem, e não nos
resta mais que envergar nossas forças para suportar o que ainda e mister
sofrer.
Ethnea
chorou a sorte dos irmãos, e para os aliviar acompanhou-os para sua nova
partida rumo a suas aventuras, que pareciam nunca chegar ao fim. Ali se
despediu deles e retornou para o pai, em quem a dor esmagava todo o
ânimo.
Rumaram
para a ilha de Fincara, mas não a encontraram. Por três meses vagaram
pelo mar aportando em várias ilhas e procurando por quem lhes pudesse
indicar a localização do seu destino. Não encontraram ninguém que
soubesse da existência de Fincara.
Ah,
irmãos, nosso sofrimento não tem fim, disse Brian. É nosso destino
navegar sem rumo pelo mar, em desatino, procurando a trilha de uma terra
que não sabemos onde está. E já não temos o barco de Manannan, Varredor
das Ondas, que aplaina toda a turbulência das águas. Agora, as ondas
nos fristigam o corpo de cansaço e nossas forças ficam à mercê da
violência desse caminho instável de aguas por onde temos de percorrer.
Certo
dia resolveram deixar o alto mar e voltar para a costa de Erin.
Contornaram a orla, entraram no mar de dentro e navegaram em direção ao
mar de Moyle. Aproximaram-se da costa de Alba, e ali desembarcaram
adentrando a terra, onde encontraram um ancião, de longas barbas e de
feições veneráveis. Perguntaram se ele sabia onde ficava a ilha de
Fincara: Os senhores buscam uma ilha submersa nas profundezas do mar. A
ilha de Fincara uma vez já esteve na superfície, ficava entre Erin e
Alba, mas há muito tempo, por efeito de encantamento, foi engolida pelas
águas.
Retornaram
à embarcação. Brian, destemido, vestiu seu traje de mergulho e colocou o
seu elmo de cristal. Com esses trajes apropriados para entrar no fundo
das águas, ele submergiu sozinho, desaparecendo da vista dos irmãos, que
ficaram à sua espera no barco.
Nadou no
fundo do mar por longo tempo até encontrar a ilha de Fincara. Tinha
muitas habitações, entre elas, uma se destacava grandiosa e imponente.
Para lá se dirigiu e, encontrando as portas abertas, entrou. Viu tão
esplendorosas mulheres, que ficou maravilhado diante de tão agradável
visão. Executavam todo tipo de tarefas artesanais: bordados com fios de
ouro, capas de fina seda e preciosos vestidos. No centro, sobre uma
mesa, viu um espeto brilhante.
As
mulheres o notaram e o acompanharam com o olhar enquanto ele, em
silêncio, caminhou para a mesa, arrebatou o espeto e rumou para a saída
da mesma forma como entrou. Nenhuma delas disse palavra, seus olhos
pararam nele admirando sua beleza masculina e sua ousadia. Antes que
pudesse alcançar a porta, elas explodiram numa sonora gargalhada, e uma
delas, a que presidia o trabalho de todas, disse: O senhor é muito
ousado, ó filho de Turenn. Sabe porventura que somos em número de 150
mulheres e que a menos poderosa é capaz de lhe impedir de levar esse
espeto, ainda que seus dois irmãos estivessem aqui para o ajudar?
Contudo,
entrou aqui sabendo o risco que corria. É valente e coragem não lhe
falta, meu bravo guerreiro. Tem o nosso apreço, e por sua ousadia, seu
valor, elegância e beleza de porte, lhe oferecemos como prêmio esse
espeto que pretende furtivamente nos tirar.
Brian
voltou-se, e lhes fez uma reverência, ao que a outra acrescentou: Temos
muitos espetos como esse. Vá em paz. Ele foi e nadou para a superfície
levando o prêmio conquistado. luchar e Iucharba esperavam pelo irmão, e a
longa espera já os fazia acreditar que o irmão tinha sucumbido na
busca. Estavam já para partir quando viram brilhar o elmo de cristal e
surgir Brian envergando o espeto de assar, a penúltima tarefa da
demanda. Os irmãos o felicitaram e todos, aliviados, trataram de rumar
em busca de cumprir a última parte da demanda. Navegaram até alcançar a
orla e costear o soberbo monte onde Midkena os viu chegar e antes que
desembarcassem ele gritou: Filhos de Turenn, aqui encerra-se sua
jornada, há muito os espero. Lutem! Não sairão destas margens sem pagar
pela morte que deram a Kian, a quem ensinei minha arte e amei com a
maior das ternuras, disse e avançou preparado para combater.
Brian
permaneceu calmo. Nem o olhar de fúria de Midkena nem a ameaça de suas
palavras o fizeram temer ou recuar. Avançou para a luta. Os dois
guerreiros se atracaram. A fúria do combate soou perturbadora no ar: as
armas tilintavam, os combatentes lançavam urros entre si, a fúria
dançava entre saltos e retorcimento de ambos na luta.
Os três
filhos de Midkena, ao ouvir o rumor fervoroso da batalha, correram para
ajudar o pai. Ali chegaram tarde. O pai tombava transpassado pela espada
de Brian. Avançaram ferozes contra ele. Iuchar e lucharba acorreram em
socorro do irmão, e começou uma severa luta entre os três filhos de
Midkena e os três filhos de Turenn. O combate que ali se travava foi
espantoso. Assolavam-se os dois grupos entre apupos de guerra e golpes
violentos, cada um assomando com terrível força contra o adversário. As
espadas furiosas debatiam-se entre si infatigáveis, soaram os metais
ecoando o tilintar continuo de forças que se chocam com violência. Seria
um espetáculo admirável de se ver, não fosse a violência da morte que
os espreitava, na iminência de fazer tombar, quais entre aqueles grupos
de irmãos em luta?
Já Os
três filhos de Turenn estavam cobertos de feridas, o sangue escorria e
as espadas de ambos os lados continuavam golpeando ferozes entre si nos
embates dos corpos em luta. A cada novo golpe recebido, a espada voltava
erguida com inacreditável força pelos braços do ferido, e ia lançar-se
contra o seu agressor. Os três filhos de Midkena, com um salto
espetacular, fugiam ao golpe com incrível destreza. Eram com efeito
grandes guerreiros, que receberam de seu pai, mestre na arte das armas,
os segredos da invencibilidade. A luta seguia e se fazia interminável,
imprevisível o desfecho, imponderável sem resultado. Ambos os lados se
igualavam na arte das armas, e embora feridos, erguiam-se infatigáveis
na luta.
Os três
filhos de Turenn caíram sobre os joelhos lado a lado, os adversários
avançaram para o golpe fatal. Imprevistamente, num salto estudado eles
se levantaram simultâneos, a espada no pulso firme cada um transpassou
os adversários. Os filhos de Midkena tombaram, esvaída toda a força da
vida, o véu da morte os veio cobrir, silenciando enfim o rumor de sua
fúria.
Terminada
a luta, os filhos de Turenn desabaram de cansaço e dor. Começaram a
sentir vivamente as feridas. Eram tantas e tão profundas, que latejavam e
todo o corpo padecia um sofrimento pungente. Tombados por terra ali se
deixaram ficar, incapazes de movimento e de palavras, mudos, as
pálpebras derreadas, como se em breve a morte os viesse tomar.
Brian
levantou as pálpebras e perguntou aos dois irmãos se ainda viviam:
estamos vivos, irmãos, mas vivos que estão atravessando os umbrais da
morte.
Queridos
irmãos, retomou Brian, levantemos e, enquanto há vida em nosso corpo,
venham comigo cumprir a última parte de nossa demanda. Sinto a morte
próxima e ainda não chegamos ao fecho de nosso compromisso, os três
gritos no topo do monte de Midkena.
Os
irmãos não se moveram. Estavam muito fracos para subir o morro e ainda
dar três gritos. Brian, reunindo todas as forças que ainda lhe mantinham
a vida, carregou os dois irmãos ao topo do monte, deixando atrás um
traço de sangue, e ali os três, convocando suas forças, deram os três
gritos que lhes foram exigidos.
Brian
conduziu seus irmãos para o barco e rumaram de volta para casa.
Navegavam pelo mar e em certa altura Brian voltou os olhos para Oeste e
falou: Ah, irmãos, vejo Bem-Edar que se eleva das águas e posso ver
também Dun Turenn ao norte. Iuchar, deitado perto de Iucharba, disse:
Desejaria entrever, mesmo que apenas num relance, Bem-Edar. Essa visão
poderia nos trazer de volta as forças e nos devolver a vida que nos
foge. Irmão, sei que nos ama. Vem e ampare nossa cabeça em seu peito
para que também vejamos Erin novamente. Deixa-nos olhar nossa terra,
nosso lar.
Brian
tomou a cabeça de cada um de seus irmãos, amparou-as sobre o peito e
eles contemplaram as montanhas rochosas, as encostas verdejantes de
Bem-Edar, e iam com os olhos presos na paisagem de sua terra enquanto o
navio para Ia se dirigia.
Chegaram
finalmente e desembarcaram ao norte de Bem-Edar, e dali seguiram para
Dun Turenn. À entrada, Brian gritou: Querido pai, estamos de volta, vem
receber seus filhos!
Turenn
acorreu ao encontro deles. Viu-os cobertos de feridas, fracos,
retornados à sua casa para morrer: Amado pai, vai depressa, procura
Lugh, entrega-lhe o espeto de assar, e diz-lhe que a última parte da
demanda também foi cumprida, e que aqui estamos à morte, feridos
gravemente na batalha que tivemos de enfrentar para cumprir fielmente a
sua exigência. Pagamos o resgate pela morte de Kian, e tudo foi
cumprido. Traga-nos as maçãs do Jardim das Hespérides para curar-nos e
nos devolver a saúde.
Turenn
apressou-se, cavalgou em disparada até chegar a Tara. Entregou o espeto
de assar a Lugh, e disse: Meus filhos cumpriram toda a demanda, também
os gritos no alto do monte de Midkena. Estão feridos de morte. Peço-lhe
que me entregue as maçãs douradas para curá-los.
Não
posso lhes dar essa cura, disse Lugh. Praticaram um ato mau matando meu
pai impiedosamente. O sangue que derramaram é o fio condutor que
determinou-lhes o destino. Está tudo cumprido. E inútil levar as maçãs.
Sua magia só atua enquanto em sintonia com o fio que trança todos os
eventos de um ato. A jornada de sofrimentos exacerbados que enfrentaram
trançou o fio, e não há volta. A morte é que pode tudo apaziguar e
redimir. Esse é o fecho natural.
Turenn voltou para os filhos, com o coração despedaçado, a toda pressa para estar com eles na hora da morte.
Brian
viu o pai chegar de mãos vazias, todo em tristeza, e adivinhou tudo.
Voltou para seus irmãos, juntou-se a eles e a vida deixou os três no
mesmo momento.
Turenn e a filha Ethnea deram as mãos e cantaram um lamento:
De mim a vida se esvai e a hora é de agonia
Nenhum consolo haverá que me alivie o mal
Ah, quando soube que o alento me fugiria
E a dor me arrebatasse no seu véu fatal?
Não
chegou a terminar, caíram mortos sobre os corpos dos heróis e nesse
momento rompeu-se o fio de sua linhagem. Terrível a sorte desses que se
despediram da vida com dor tão extrema. O que foram antes de sua jornada
apagou-se no sopro do vento. De sua vida só ficou esse período, curto
de extensão, maior que sua vida inteira. Foi por essa travessia épica no
seu oceano de vida na nau mágica de Manannan que sua história
atravessou os tempos e sua memória imprimiu-se permanente.