Hoje veremos a lenda do nascimento de Lugh e porque desde antes de seu nascimento ele já tinha uma grande importância. Acompanhem o Texto e saibam como Lugh nasceu:
Conta-se que os Fomore sempre existiram na Irlanda. Contemporâneos da terra, nasceram com a terra, e ali habitaram desde que o mundo passou a existir. Já a Irlanda existia, também os Fomore existiam. E só ali? Não sabemos, o que sabemos é que estavam ali. Eram enormes e deformados. Alguns tinham cabeça de cavalo, bode ou touro; outros tinham apenas um braço ou uma perna. Divindades escuras, portadoras dos poderes do mal e das trevas, filhos da escuridão e do abismo do mar, do caos e da noite. Uma raça cruel e violenta.
O
mais terrível deles era Balor, cujo pai tinha cara de boi. Mas o que
distinguia Balor era seu olho, temível olho, possuidor de um poder
maligno capaz de matar quem se visse sob sua mira. Não foi a natureza de
sua raça que o dotou desse olho mágico destruidor. Foi sua extrema
curiosidade. Certo dia as feiticeiras de seu pai preparavam uma poção
mágica. Saía do caldeirão fervente uma fumaça espessa de natureza
mortal. Balor olhou bisbilhoteiro pela janela. A fumaça o atingiu e
impregnou de sua força maligna um de seus olhos. Desde então adquiriu a
capacidade de matar e transformar em pedra todo ser vivo a quem olhasse.
Nem deus nem gigante podia escapar ao seu olho maligno. Os Fomore se
reuniram para deliberar sobre o seu destino. O principal dilema que os
perturbava era o perigo que Balor representava para a própria
sobrevivência da raça. Não desejavam matá-lo, e, depois de muito
ponderar, encontraram uma solução: Que ele mantenha sempre fechado seu
olho mau para nossa própria paz! — disseram enfim apaziguados.
Sim,
Balor viveria, decidiram, sob a rígida condição de que ele mantivesse
seu olho maligno resguardado sob as pálpebras, de onde nunca podia
revelar-se ao mundo nem aos Fomore. E foi assim que, embora tivesse dois
olhos, era como se tivesse apenas um. Desde então passou a ser chamado
Balor-do-Olho-Maligno.
Nem todos da raça Fomore tinham aparência monstruosa.
Euathan,
um de seus chefes, era uma presença magnífica aos olhos, um príncipe da
escuridão. Trajava um manto trançado de fios de ouro, preso com um
broche também de ouro engastado com uma pedra preciosa que brilhava
magnificamente. Sob o manto trazia sempre uma camisa toda em fios de
ouro reluzentes. Suas lanças eram de prata engastada em cabo de bronze;
sua espada tinha punho e prendedor de ouro.
Seu
filho Bress não era menos belo. Nascera de seus amores furtivos com
Eri, bela deusa da tribo de Danna, deuses de grande poder mágico que
nesse tempo viviam nas cidadelas de Findias, Gorias, Murias e Falias,
regiões ocultas onde ninguém podia chegar. Elathan veio secretamente
pelo mar, tomou Eri, com ela se deitou e copulou. Ao partir,
entregou-lhe um anel dizendo que não o desse a ninguém, salvo àquele em
cujo dedo o anel se ajustasse com perfeição. Num futuro ainda distante, o
possuidor da jóia viria ao seu encontro, disse e partiu. Cumprido o
tempo, Eri deu à luz Bress. Apropriado nome, que significa “belo”. Ele
cresceu e de tal modo sua beleza era impressionante, que passaram a
dizer: “E um Bress” para referir a todo objeto cuja beleza sensibiliza o
olhar. Seja homem, mulher, seja objeto material seja paisagem
encantadora aos olhos. Esses deuses então vieram para Erin numa nuvem
mágica, e ali passaram a habitar, e ainda hoje na Irlanda tudo que é
belo recebe esse elogio nascido desse deus escuro engolfado na poeira da
memória.
Entre
os muitos dias havidos entre o povo Fomore, chegou aquele em que
Balor-do-Olho-Maligno foi empossado rei. Nessa ocasião ouviu uma
profecia: “Balor, Balor, o seu neto há de matá-lo!”
Ele
procurou a solidão e se retirou para pensar em sua sina. Abriu seu olho
maligno, e uma rajada fumarenta queimou o chão onde pisava. Recolheu de
volta o olho entre as pálpebras: Aquieta, poção que me encheu de ira e
desigualdade entre os meus. Esconde seu vítreo veneno nessa cova onde
olho algum pode penetrar. Aquieta, furor! Tenho apenas uma filha, minha
Ethlinn. Oh, Ethlinn, você, que era para gerar a minha descendência,
está prometida a gerar a minha morte. O destino é impiedoso. Como de mim
então nascerá o meu maior inimigo? Hei de desviar o censo dessa
maldição!
Entreabriu
rápido a pálpebra de seu olho mau, e, antes que dele escapasse a ira de
seu veneno mortal, o trancou de volta no seu recinto escuro. Saiu
apressado, foi ver a filha pela última vez, e dali foi prescrever suas
determinações. Mandou construir uma torre no alto de uma escarpa na Ilha
Tory, ali prendeu a filha e a exilou do convívio comum. Convocou doze
guardiãs para a vigiar e impedir que os olhos de Ethlinn vissem homem, e
mesmo evitar que soubesse que no mundo pudesse haver outro sexo além do
seu. Nessa reclusão Ethlinn cresceu e tornou-se mulher de surpreendente
beleza.
Aconteceu
porém que Kian, da tribo de Danna, tinha ama vaca mágica. Seu leite era
tão abundante, que todos a ambicionavam. Para evitar que a roubassem,
ele a guardava com estrita vigilância. Kian tinha dois irmãos, um
chamava-se Kethen; o outro, Ku, era ferreiro, forjador de armas e
artífice dos Danna. Balou ambicionou possuir a vaca mágica de Kian, e
vivia espreitando o momento certo para roubá-la.
Balor
viu o momento azado quando, espreitando Kian em sua faina, ouviu ele e
seu irmão Kethen conversarem sobre as armas que Ku estava forjando para
eles. Era preciso, diziam, levar à forja os melhores metais para que o
irmão tivesse material adequado a armas invencíveis: Não posso deixar
minha vaca à mercê da sorte, irmão, e convém que um de nós fique aqui
para guardá-la. Vou eu levá-la e não se afaste daqui por nada, disse
Kian.
Estava
ali à mão a hora de obter a vaca almejada. Balor apareceu a Kethen sob a
forma de um menino. Teceu intrigas dizendo a Kethen que tinha ouvido
Kian e Ku planejarem usar o melhor metal para fabricação de suas armas e
deixar o metal comum para a arma de Kethen.
Ele
ficou furioso, deixou a vaca aos cuidados do falso menino e correu para
a forja a fim de frustrar o plano dos irmãos. Constatou que fora
enganado. Ao contrário do que tinha ouvido, Kian e Ku trabalhavam no
melhor metal para a fabricação de sua arma, e nada havia neles que
denunciasse a mínima intenção de fraude.
Kian,
ao vê-lo ali em hora tão inoportuna, quis saber o que tinha sucedido a
Kethen para abandonar sua vaca preciosa e ir ao encalço deles. Ele lhe
contou tudo, cabisbaixo e envergonhado. Agora a coisa estava perdida,
pois tinha deixado o menino mentiroso tomando conta da vaca. Kian levou
as mãos à cabeça: Você foi leviano, irmão, certamente era Balor
disfarçado. Ele levou minha vaca para a ilha Tory. Isso é irremediável,
mas hei de me vingar.
Kian foi imediatamente buscar o conselho de Biroge, o druida:
Meu
querido Kian, Balor pensa que pode reverter a ação do destino. Doze
guardiãs vigiam sua filha em uma torre isolada para impedir que ela
conheça homem. Não será difícil transpor essa vigilância. Ouça o que
digo e me siga.
Biroge
transmutou a aparência de Kian e, por antes mágicas, o levou
transvertido de mulher através do mar. Chegaram à torre e se
apresentaram para as guardiãs de Ethlinn como duas mulheres que tinham
se lançado ao mar para fugir de raptores. Não sabiam onde estavam e
pediram abrigo. Foram recebidas. Biroge encantou as guardiãs, de modo
que ficassem em estado de dormência. Outro encantamento trouxe de volta
pana Kian suas formas masculinas, fê-lo belo e desejável para uma moça
que nunca tinha visto homem e o conduziu a jovem Ethlinn. Ela olhou
admirada aquela figura masculina, e Biroge, com um vibrar de sua vara
mágica, fez aflorar na jovem o desejo natural da vida que deseja criar
vida. Como se há muito esperasse a vinda de um homem, Ethlinn recebeu
aquele moço como a um deus, e o amou. Passaram toda a noite juntos no
intimo entrelaçamento de seus corpos, ambos entregues ao amor, ele para
vingar-se de Balon; ela porque sentia brotar no corpo todo o fervor de
sua fertilidade feminil. Amaram-se férvidos, e, desejosos de reter o
gozo do amor, Kian a atravessou com o fogo de seu Órgão viril nove
vezes. Ao amanhecer, Biroge e Kian desapareceram subitamente do mesmo
modo como tinham chegado. As guardiãs ouviram Ethlinn cortar que a noite
lhe aparecera uma criatura muito diferente dela; tinha experimentado um
entrelaçamento caloroso e delicioso de corpos. Ele a tinha atravessado
com um órgão espesso e rijo, macio e aveludado. Ela sentiu que a vida e a
morte vibravam nela simultaneamente e uma penetrante sensação de prazer
lhe ficou impressa em todo o corpo e sentimentos. Nunca tinha suposto
que tais coisas pudessem existir. As guardiãs, ao ouvirem esse rebato,
adivinharam tudo e temeram a fúria de Balor. Trataram de convencer
Ethlinn de que ela tivera um sonho e nada mais disseram sobre o assunto.
Mas no devido tempo, Ethlinn deu à luz três meninos.
A
notícia desse acontecimento chegou a Balor. Furioso, principalmente
tomado de um temível medo, sentiu que novamente era preciso interpor sua
mão para deter o curso dos acontecimentos. O destino teimava e lhe
dizia que três crianças nascidas de sua estirpe vinham ao mundo, uma
delas, qual das três, destinada a matá-lo? Mandou tirar as três crianças
à mãe, levá-las ao profundo mar alto e afogá-las, a todas. Nem uma
ficasse.
O
homem encarregado dessa ordem tomou as crianças, enrolou-as juntas em
um pano cuidadosamente preso com broches e as levou como se carregasse
um saco. No momento que começou a deslizar pela enseada, um dos meninos
moveu o braço e, por artes de magia, o broche que o prendia aos panos se
desprendeu. A criança escorregou e caiu na pequena baia. O homem achou
que ela morreria e a deixou para trás. As outras duas foram afogadas de
acordo com a ordem de Balor. De volta, o mensageiro deu conta ao seu amo
de que tudo fora cumprido, e Balor, contente e apaziguado, moveu seu
olho perigoso sob as pálpebras.
O
que Balor não podia adivinhar é que a negligência do homem tinha
deixado a obra incompleta; o menino abandonado na baía tinha um outro
destino entre os deuses Danna; matá-lo a ele, Balor, não passava de
circunstância mínima relacionada com uma façanha maior que essa criança
recém-nascida, fruto de sua estirpe, estava destinada a realizar. Nem
artes mágicas nem bem planejados atentados tirariam a sua vida. Ela
viveria e cumpriria o curso prescrito. Biroge, o druida, é quem veio
recolher o menino caído na baia e levá-lo ao pai, Kian, que o recebeu
contente de ver brotar de sua noite amorosa com Ethlinn aquele fruto
continuador do fio de sua raça e estirpe. Consagrou a criança e lhe deu o
nome de Lugh. Depois o entregou a Ku, o ferreiro, para criá-lo,
ensinar-lhe o próprio oficio e tomá-lo hábil em todos os ofícios e
artes.
O
menino chegou à adolescência e os Danna o deixaram aos cuidados de
Duacha, “O Escuro”, rei da Grande Campina, Terra dos Imortais, Terra da
Eterna Felicidade, e ali longe da vista dos povos do mundo de cá viveu
imperceptivelmente até tornar-se adulto. Entronado em todas as ciências e
habilidades, obteve o conhecimento de tudo. Detinha os atributos
solares do poder universal, que lhe davam a posse dos segredos de todas
as artes, de toda a força e de todo o saber, conhecedor tanto da
medicina terapêutica, quando da música e da poesia. Em breve, o povo da
tribo de Danna veria chegar esse deus radiante de luz para coabitar com
eles.
0 comentários:
Postar um comentário