A Chegada de Lugh
Enquanto
os Fomore se reuniam em conselho, Nuada celebrava com os deuses em
Tara, a capital da tribo de Danna, seu retomo ao trono. Estavam no auge
da alegria, quando o porteiro entrou para anunciar que um estranho,
vestido como rei, estava nos portões pedindo fosse recebido por Nuada.
Tentou despedi—lo, mas o estranho insistia. Apresentou-lhe tal lista de
talentos, que ele não teve mais palavras de recusa e vinha ali para
anunciar a noticia da chegada desse formidável desconhecido.
Nuada e todos os demais festejaram a noticia: Diz-nos que argumentos ele apresentou em seu favor para ser recebido.
O
porteiro desfiou a lista de virtudes que ouvira o desconhecido
alardear: Ele é carpinteiro, ferreiro, harpista, poeta e contador de
estórias, mágico, médico e um guerreiro renomado tanto por sua destreza e
talento quanto por sua força; é artífice perfeito na arte do bronze e,
resumindo, disse que sabe tudo que a ciência e o conhecimento podem
produzir. É um Ildanna, pois se declara conhecedor de todas as coisas e
mestre em todas as artes. Eu lhe disse que tínhamos mestres
incomparáveis em todas as artes que ele mencionou. Nosso carpinteiro é o
hábil Luchtainé, disse-Ihe; nosso ferreiro é Goibniu, e não ha melhor
em toda Erin. Ogma, nosso guerreiro, é o maior dos campeões. Temos
excelentes harpistas, poetas e contadores de estórias, inumeráveis
mágicos e druidas. Credné é nosso artífice na arte do bronze; Diancecht é
nosso médico. Todos possuidores de habilidades imbatíveis, de maneira
que não precisamos de mais ninguém.
Ele
não desistiu, e disse-me: Se é assim como diz, pergunte ao rei se ele
tem um homem em sua corte que reúna sozinho a mestria em todas essas
artes. Se ele tem junto de si um homem assim, partirei imediatamente,
pois Tara não precisará de mim.
Diante disso, não pude mais interpor recusa, e estou aqui para anunciá-lo.
Qual é o seu nome, sua estirpe e de onde vem? — perguntou Nuada.
Chama—se Lugh. É filho de Kian, filho de Diancecht, e de Ethlinn, filha de Balor, conforme me declarou.
Nuada mandou trazer seu tabuleiro de xadrez e ordenou ao porteiro que trouxesse Lugh a sua presença.
O
jovem entrou. Era belo como o sol, e todos admiraram sua radiância e
esplendor. Nuada o convidou a sentar e jogar xadrez com ele. Lugh venceu
a partida, e causou a admiração de todos com um inusitado e novo
movimento de peças, que nomearam “Cerco de Lugh”.
Nuada,
arrebatado de entusiasmo, o convidou para um salão interno e o fez
sentar na “Cadeira dos Sábios”, reservada para homens de grande
sabedoria.
Ogma,
o campeão, demonstrou sua força. Havia ali uma enorme pedra retangular e
plana, tão pesada, que para erguê-la eram necessárias quatro parelhas
de bois. Ogma a arrastou e a levou para fora das portas. Lugh a arrastou
de volta. A pedra era apenas uma parte de outra ainda maior que ficava
fora do palácio. Lugh a levantou e a recolocou em seu lugar.
Pediram
que ele tocasse harpa. Ele tocou o “som-que-adormece”. O rei e toda a
corte adormeceram, e dormiram por vinte e quatro horas seguidas. Então
ele tocou o “som-elegiaco” e todos começaram a chorar. Por último tocou o
“som-do-regozijo”, e todos exultaram de alegria.
E
foi assim que Lugh demonstrou suas imbatíveis habilidades, o poder de
sua magia e sua radiância se imprimiu em todos os corações. Nuada, vendo
todos esses talentos incomparáveis reunidos em um só deus, quis ter ao
pé de si criatura tão valiosa, e o recebeu entre os seus. Tomou conselho
com os seus pares e obteve de todos a mesma opinião: Mantenha Lugh na
corte e faça-o sentar-se na “Cadeira dos Sábios” ao seu lado, disseram. E
assim foi feito. Lugh passou a viver na tribo de Danna e ali ficou como
um rei luminoso e mágico, conhecedor de todas as coisas.
Pouco
tempo depois, novo acontecimento revolveu o destino da Tribo de Danna.
Apesar de Bress ter sido destronado, os Fomore continuavam a reclamar
dos Danna o tributo anual. Enviaram seus recolhedores de impostos, 81 ao
todo, à Colina de Babr para recolher a taxa extorsiva. Ali os deuses
tinham de vir para render submissão a seus pés e pagar o tributo.
Ficaram
atônitos quando viram aproximar um grupo de cavaleiros majestosos,
montados em belos cavalos e armados magnificamente. Um guerreiro
luminoso, alto e belo, o rosto radiante como o sol, os guiava. Vinha
montado no magnífico cavalo de Manannan Mac Lir, de Crinas Brilhantes,
que cavalgava tanto em terra como no mar, com leveza e tão veloz como o
vento. Vestia a cota de maIha de Manannan, cujas malhas nenhuma arma
podia penetrar. O seu elmo ostentava três brilhantes reluzentes. Trazia
nas mãos a espada poderosa de Manannan, que nunca falhava em seu golpe
mortal. Bastava a vista dessa espada para os guerreiros recuarem
fraquejados, toda a coragem perdida, aterrorizados diante da potente
espada de que, sabiam, não podiam escapar.
Ele
parecia o sol alvorecendo a manha. Era o esplendor de seu semblante e
fronte que assumia a feição de um sol assim alvorecente, e não podiam
olhar seu rosto, tamanho o seu esplendor. Maravilha! Era Lugh, o novo
deus-sol que chegava. Ele ergueu-se temível diante dos recolhedores de
taxa, e gritou: É assim que esses demônios oprimem o povo de Danna?
Avançou contra eles em fúria e matava um após outro. O sangue inundava o
chão e já tinha matado setenta e dois quando recolheu a espada na
bainha, voltou-se para os nove ainda vivos e disse-lhes: Voltem ao seu
rei, narrem o que presenciaram aqui e lhe digam que o Povo de Danna não
pagará mais tributos a tribo dos Fomore.
Trêmulos
de medo do terrível poder e força de Lugh, partiram para seu reino de
mãos vazias e arrasadas. Ali, diante de Balor e de todo o povo, narraram
o que lhes tinha acontecido e declararam a mensagem que Lugh enviava ao
rei.
Estavam
reunidos em assembléia Elathan, o belo; Tethra e Indech, reis dos
Fomore; Bress, rei deposto dos Danna; Cethlenn dos dentes curvos;
Kethlend, esposa de Balor, e todos os principais guerreiros e druidas
dos Fomore. Todos os habitantes do fundo do mar ficaram consternados
diante da noticia malfazeja:
Quem é esse guerreiro de quem nunca ouvimos falar? — quis saber Balor, por debaixo de suas pálpebras fervia seu olho mau.
Seus
campeões não sabiam dizer sobre Lugh. Kethbend, a rainha, foi quem
revelou sua identidade: Sei quem é — disse a esposa de Balor. É o filho
de nossa filha Ethlinn. Seu nome é Lugh e o chamam de Ildanna, pois é
hábil em todas as artes. Dele falam as profecias que, ao seu
aparecimento, não governaremos mais Erin. Nunca mais.
Balor
estarreceu: Como pode ser filho de Ethlinn, nossa filha? Reneguei e
matei os frutos de seu ventre! E como agora me falam de seu filho!
Emergiu então das trevas de sua morte esse neto detestável de minha
alma, meu inimigo, a quem chamam o Ildanna!
—
disse só para si no silêncio agitado de sua consciência. Estremecia, e
seu olho mau dançava convulsionado sob as pálpebras. Não pôde mais
deliberar entre os seus. Fugiu da assembléia para aquietar seu olho
convulso, pesar e medir bem medido o curso a que levava esse fatídico e
inesperado ressurgimento de um inimigo, seu neto, que ele julgava
liquidado.
Ah,
a morte dos recolhedores de taxas significa que os Danna estão
dispostos a nos fazer guerra, declarou Tethra, um de seus reis. O rei
Balor embora ausente, entrou a debater ferreamente a questão e ficaram
ali remoendo seus temas de guerra, planos e furor contra a tribo de
Danna. Que fiquem, pois, engolfados no fervedouro de sua disputa, que
assim lhes compraz estar. Nós agora vamos a outra parte.
Vemos
que, em Erin, Lugh envia mensagens por todos os lugares da terra,
convocando uma assembléia geral de toda a tribo Danna. Kian, filho de
Diancecht e pai de Lugh, era um dos portadores dessa mensagem. Ocorreu
que ele ia pela campina de Muirthemne, viu três guerreiros armados que
se aproximavam. Reconheceu-os. Eram Brian, Ouchar e Iucharba, os três
filhos de Turenn, filho de Ogma. Entre eles e Kian, seus irmãos Kethé e
Ku, havia uma desavença pessoal. Kian, desacompanhado de seus irmãos,
viu que não lhe era conveniente cruzar com aqueles inimigos: Se meus
irmãos estivessem comigo poderia lutar, mas sozinho não me convém
enfrentá-los. É melhor me ocultar.
Viu
ao redor uma manada de porcos pastando na campina. Como deus, tinha a
faculdade de mudar de forma. Girou sua vara mágica e se transformou em
um porco, juntou-se ao bando na campina e começou a pastar no meio
deles.
Ah,
pena, os filhos ele Turenn já o tinham visto: O que aconteceu com o
guerreiro que vinha em nossa direção há pouco? Perguntou Brian. Não
sabemos o que foi feito dele, responderam os outros dois. Vocês não
ficaram vigilantes como é preciso em tempo de guerra, disse Brian. Ele
se transformou em um daqueles porcos que pastam na campina. Posso mesmo
dizer que sei quem é esse guerreiro. É Kian, e vocês sabem que é nosso
inimigo.
E
uma pena que tenha buscado refúgio entre os porcos, pois pertencem a
alguém dos Danna. Não nos é permitido atacá-los, e, mesmo que matemos
todos, Kian pode escapar.
Brian
novamente reprochou seus irmãos: Vocês são tolos, não conseguem
distinguir um animal mágico de um natural. Vou lhes mostrar. Brandiu sua
vara mágica, e os transformou em dois caçadores, velozes, assassinos
cães, e os instigou contra os porcos.
Os
cães mágicos logo encontraram o porco mágico, e o isolaram do bando.
Brian atirou a lança e o feriu. O animal ferido correu para eles, e com
voz humana gritou: Foi um mau ato esse que vocês praticaram. Sou Kian,
filho de Diancecht, e devem me poupar.
Iuchar
e Iucharba queriam poupar a vida de Kian, mas o feroz Brian jurou que,
ainda que ele retornasse sete vezes à vida, sete vezes o mataria.
Se vai me matar, deixe-me retomar minha forma humana antes, pediu Klan.
Bom grado permito que retome sua forma humana, pois prefiro matar um homem a um porco.
Kian pronunciou a fórmula própria, seus disfarces caíram e ele ressurgiu: Sou um homem e isso o obriga a me poupar, disse.
Não, não obriga, respondeu Brian.
Então,
ouçam bem. Será o pior dia de suas vidas, pois o resgate da vida de um
porco não é o mesmo da vida de um homem. Se me matarem, digo-lhes, nunca
houve nem nunca haverá resgate de sangue mais pesado do que pagarão por
mim. Sua armas denunciarão a minha morte e sua autoria, completou.
Mas
os filhos de Turenn não quiseram dar-lhe ouvidos. Evitaram as armas e o
mataram com pedras e paus. Agrediram Kian atém do que é possível
conceder a impiedade. Todo ele transformou-se em um corpo disforme, a
pele esfolada, os músculos à mostra e cobertos por uma massa coagulada
de sangue. Sepultaram-no e sobre a sepultura empilharam pedras até
formar um bloco comprimido. A terra lançou horrorizada o corpo de volta.
Voltaram a enterrá-lo. A terra lançou o corpo de volta. Seis vezes o
enterraram e seis vezes a terra o devolveu. Só na sétima tentativa
obtiveram êxito. Ali o deixaram e partiram para Tara.